Chama-se epopeia a narrativa que descreve e exalta fatos históricos e personagens heroicos. Trata-se de uma forma adequada à expressão de sentimentos coletivos, de cenários grandiosos, repletos de confrontos e combates. Pertencem, portanto, ao gênero épico os textos preocupados com a exaltação de conquistas em que comumente o narrador – outrora, o poeta -assume um tom bastante eloquente.
São conhecidas, na Antiguidade Clássica, a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Na última, o poeta narra a volta de Ulisses a Ítaca, sua casa, muitos anos depois de finda a guerra de Troia. Retorna vencedor, embora disfarçado de mendigo maltrapilho. Na Renascença, Os Lusíadas, de Camões, com seus mais de oito mil versos, dão conta não só da viagem de Vasco da Gama às Índias, mas da supremacia político-econômica do povo português, da sua ciência das técnicas de navegação, desbravando mares nunca dantes navegados e se apossando de terras remotas, lutando entre gentios com bravura e destemor.
A Modernidade é pouco afeita a narrativas desse porte. A matéria épica se tornou rarefeita; “a imitação, por meio do metro”, como propôs Aristóteles, “de seres de elevado valor moral ou psíquico” parece encontrar poucas correspondências nos tempos modernos que dão lugar a heróis muito mais tangíveis e realistas, porque conflituosos, dúbios, frágeis e sobretudo falíveis. Personagens que não carregam mais responsabilidades coletivas, porém, quando ainda o fazem, carregam a fragilidade da condição humana e não mais o peso do mito infalível.
Na Literatura, o século XVIII dá forma e estrutura ao gênero romanesco cujos personagens reinventam de um modo mais plausível a complexidade do ser humano, sua natureza instável, não retilínea, nem sempre movida por razões grandiosas e, sobretudo, passível de falir, mesmo que à revelia de sua bravura. De lá para cá, para nossos tempos atuais, a figura do herói como portador das virtudes de um povo, de uma nação, de uma coletividade, praticamente desapareceu. Em especial, apagou-se a necessidade de justificar a história pelo artifício literário de uma invenção grandiosa.
A literatura da segunda metade do século XIX e a do século XX preocuparam-se com o contingente, o episódico, as diversidades, o diferente, numa espécie de antirrelato da nação, de uma (contra)viagem, tema tão caro à literatura, talvez mesmo, sua condição fundadora.
Apesar dessas constatações, o imaginário coletivo (se é que tal instância existe) insiste em reconvocar, sempre que possível ou em momentos como esse da Copa do Mundo, a narrativa épica que diga não apenas da bravura de seu coletivo, mas que conte a saga das dificuldades vencidas, dos percalços ultrapassados, das peripécias contornadas, das estratégias empregadas para a vitória que nos sagre campeões mais uma vez. Em tempos ultramidiatizados e de “narrativas do self”, tudo isso se potencializa em feições, gestos, gritos, atitudes repetidas à exaustão.
O futebol, no Brasil, talvez não seja apenas uma paixão nacional, pois essas também são inventadas, mas uma necessidade épica que possa sustentar alguma grandeza que nos distinga para além da incontestável extensão territorial e dos igualmente incontestáveis índices de analfabetismo funcional, escolaridade, precariedade na saúde e violência urbana. Depositam-se nos jogadores da seleção os brados retumbantes de um povo que se quer heroico em algum sentido.
A emoção dos jogadores, às vezes convertida em lágrimas, é hipertrofiada pela obscenidade dos closes televisivos replicados de imediato nos vertiginosos tentáculos das redes sociais. O choro, como bem lembrou o editor de redação da Folha da Manhã, o jornalista Aluysio Abreu Barbosa, pode ser percebido como um momento de lirismo porque traduz a emotividade daqueles que criam a realidade, contaminando-a com sua subjetividade. As lágrimas foram perseguidas, porque pareceram exageradas e poderiam sugerir o descontrole que o herói épico não pode ter. Ora, o que foram e serão sempre exageradas são as lentes persecutórias da mídia, capazes de quase fazer escorrer a lágrima que só embaça os olhos dos jogadores.
Esse texto era para dizer da tristeza em ver, fora da Copa, o jogador Neymar: o camisa 10 que foi alçado, mesmo antes do início dos jogos, à condição de herói da saga em busca do hexacampeonanto. Franzino, não é na força física que encarna as virtudes do herói épico, mas naquilo em que o povo brasileiro quer se ver espalhado: a alegria, a irreverência, a genialidade e a humanidade que, por avesso que seja, tornou-o falível. Fosse Neymar um personagem épico, levantar-se-ia do chão e, mesmo com dores inimagináveis, “mais do que prometia a força humana”, estaria na linha de frente do combate da semifinal desta terça-feira.
Não vivemos tempos épicos, nossos heróis choram, e suas forças humanas não contam com a intervenção divina. Mas de qualquer forma: Avante!
(Analice Martins)