Praia do Futuro

O novo filme do diretor Karim Aïnouz volta a explorar a temática da falta e do vazio existenciais. Mais do que de estradas e deslocamentos, seu cinema é feito de impasses entre idas e vindas, partidas e chegadas, entre o desterro que impulsiona e a busca que não se completa. Há sempre personagens em trânsito. Talvez o mesmo que marque sua trajetória pessoal entre outras culturas e países. Filho de uma brasileira e de um argelino, nascido em Fortaleza, sua produção cinematográfica toca fundo na mitologia brasileira do sertão, sem pretensões demasiadamente localistas, como se nos dissesse que o sertão está em nós: o seu vazio, a sua solidão e o seu inexplicável. A dimensão política desta filmografia não está na coletividade, mas sim no indivíduo, no privado de suas dores, que, no fundo, são variações de um abandono fantasmagórico.

Conhecido pela direção dos premiados Madame Satã (2002), o Céu de Suely (2006) e Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), Aïnouz sempre fez do corpo o espaço desses atravessamentos. Em Praia do Futuro (2014) não é diferente. A cena quase inicial mostra dois corpos que se debatem, se tocam e se perdem. Dividido em três partes, esta primeira, “O abraço do afogado”, bem traduz o risco da morte. Donato, interpretado pelo ator Wagner Moura, é o salva-vidas da praia do Futuro, em Fortaleza, que não consegue evitar a morte do turista alemão. O fracasso do salvamento, o primeiro em sua vida profissional, mexe com o personagem, acostumado a restituir a vida aos outros. A visita ao hospital onde se encontrava Konrad (Clemens Schick), o outro turista amigo do afogado, para devolver-lhe os pertencentes, deflagra a aproximação de ambos. A cena seguinte, depois de um corte bem ao gosto estilístico de Aïnouz, já revela a homossexualidade de Donato. Os dois transam no carro parado à beira da estrada.

As perdas vivenciadas pelos dois, se não justificam de todo a imediata relação, empurram-nos para o encontro que impulsiona a partida de Donato para Berlim. Ao deixar a terra natal, em princípio para uma aventura amorosa, Donato abandona a mãe e os irmãos. Em especial, o mais novo Ayrton (Jesuíta Barbosa) para quem ele era o herói Aquaman. Se todo deslocamento é, por um lado, a busca de algo novo, pode ser também a ruptura de laços arraigados. As cenas de extremo afeto entre Donato e Ayrton na primeira parte do filme são substituídas pelo reencontro em Berlim, uns dez anos depois, quando Ayrton cobra de Donato, entre socos, tapas e abraços, o abandono a que fora relegado.

Nesta terceira parte, “Um fantasma que fala alemão”, o Aquaman não é mais o herói dos mares, mas de um aquário gigante no qual trabalha. Aparentemente ambientado em Berlim, falando alemão e distante de Konrad, razão inicial de sua partida, Donato não é mais o herói da infância de Ayrton. É um fantasma errante, em fuga de si mesmo, sem contato com a família, sem saber da morte da mãe, sem raízes e sem um futuro claro, ou seja, um “Herói partido ao meio”, como se chama a segunda parte do filme. Sem vínculos maiores com a família e mesmo com o amante alemão, Donato continua carregando o mar e praia da terra natal. Em cena da primeira parte, afirma para Konrad que não conseguiria viver longe da praia. No frio e no inóspito das belas paisagens berlinenses, as estradas percorridas na moto de Konrad são o trânsito constante que parece preencher um vazio que não se explica. A pergunta que perpassa o filme não é propriamente de que ou de quem Donato foge. Da família, de si mesmo, de sua homossexualidade? A grande interrogação, mote da obra, é o que Donato busca nessa cidade estrangeira não menos desterrada para si do que a Fortaleza natal. Não à toa, as cenas últimas sugerem algum fiapo de resposta. Donato, Ayrton e Konrad percorrem juntos uma estrada e uma praia gelada e deserta do norte da Alemanha, como se a apontarem que as paisagens são móveis, não se fixam geograficamente. Permanecem, no entanto, no corpo e na memória.

A chegada de Ayrton a Berlim, a cobrança da ausência cruel que lhe fora imposta pelo irmão mais velho, misto de pai e herói, serve como elemento catalisador do roteiro e da sequência fílmica. Ayrton injeta sangue no aparente alheamento de Donato. Talvez, mais do que um acerto de contas com o passado, a presença inesperada de Ayrton, na terra estrangeira, seja algum preenchimento do futuro, aludido no título e na geografia do filme, mas tão esmaecido pela neblina de nossos vazios.

O hipócrita carimbo “avisado” timbrado nos ingressos de algumas salas de cinema no Brasil como advertência a cenas de sexo entre dois homens deveriam ser, antes, o aviso de que o cinema nacional “vai bem, obrigado”. Que Wagner Moura nos dignifica, como ator, de Capitão Nascimento a Donato, que Jesuíta Barbosa carrega no corpo franzino uma potência cênica invejável e que Karim Aïnouz faz cinema da melhor qualidade, livre de clichês e a quilômetros de distância da indústria da Globo Filmes.

(Analice Martins)

A ficção da Copa do Mundo

Eventos como a Copa do Mundo, capazes de reunir milhões de cidadãos de nacionalidades diferentes em torno de um sentimento de pertencimento, têm sempre um quê de ficção. Não porque construam uma mentira, mas tão-somente por fingirem um modo fixo de localização no tempo-espaço: ser de algum lugar e sentir esse lugar de uma forma uníssona.

Assim como as religiões, o futebol, sobretudo quando em época de campeonatos mundiais, recupera raízes às vezes esfaceladas pelo igualmente intenso sentimento de repulsa que uma nação pode nos despertar no dia a dia. Por isso, não é de estranhar que as mesmas vozes que vêm tomando de assalto as ruas, as rodovias, as praças e a esplanada desde 2013, por interesses diversos, reúnam-se, agora, em um só grito de entusiasmo: Vai que é sua, Brasil!

Do quase nada que entendo de futebol, percebo, no entanto, essa dimensão de pátria disseminada que em tempos de Copa se retrai numa espécie de fundamentalismo religioso. Jogadores que talvez passem a maior parte de suas vidas jogando em times estrangeiros sonham a esperança da convocação para, enfim, vestirem a camisa de seu país de origem e se consagrarem como campeões do mundo por sua seleção, bradando o hino e agasalhados pela bandeira nacional.

Mesmo para os que pouco sabem de futebol, não é difícil perceber a dinâmica do capital regendo os passos de nossas promessas futebolísticas. A internacionalização do capital e a irrefreável globalização dita as forças de deslocamento e transferência dos jogadores mundo afora. Os mais bem sucedidos são cidadãos do mundo, vestem grifes internacionais, deslizam em carros importados e jatinhos particulares, mas dizem sentir falta do arroz e do feijão brasileiros. Será?

Os menos afeitos a essa narrativa de saudade do arroz com feijão hão de dizer que até isso é marketing, faz parte do discurso localista do qual nenhum jogador brasileiro do Paris Saint-Germain, Barcelona, Real Madri, Milan, Bayern de Munique e não-sei-mais-o-quê pode abrir mão sob pena de não ser escalado por Felipão, o gaúcho bravo e macho, que simboliza nossa virilidade (ou seria vigor?) futebolísticos. Tem também gringo no nosso futebol, mas eles dizem gostar do nosso arroz com feijão e churrasco.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, as tradições são inventadas. Nesse sentido, elas também são mais ficção do que empiria. Ao contrário do que pensa o senso comum, a ficção não é o oposto da verdade. A ficção é uma outra forma de construção da verdade de nossos sentimentos e, mais legítima, porque marcada por nossas subjetividades. No caso das tradições, há ainda o fato de serem ficções compartilhadas por uma coletividade. Sem tal sentimento de pertença comum, não poderíamos falar em tradições e raízes nacionais.

A nação brasileira, politicamente falando, talvez tenha nascido com o grito de Dom Pedro na primeira metade do século XIX, mas quem de fato criou o Brasil com suas diversidades, suas múltiplas raízes, seu hibridismo e sua urbanidade incipiente foi o Romantismo de Gonçalves Dias, de Castro Alves e de José de Alencar. Devemos à literatura romântica o início da exposição de nossa constituição mestiça, ainda que vista por um sentimento europeizado.

Pois a Copa do Mundo, uma outra vez em solo brasileiro, é como a literatura: uma espécie de ficção na qual projetamos nossas raízes, nosso sentimento de pertencimento por vezes esgarçadinho e tão pobrinho para parafrasear o poeta Vinicius de Moraes. Embora cantemos a pátria como mãe gentil, já sabemos que essa rima desandou e que a acalentamos como patriazinha tão pobrinha.

Mas, nessas ocasiões, juntamos nossos esforços exauridos e gritamos com força atávica: Vai que é sua, Brasil! Da pátria sem sapatos como a sabemos, queremos vê-la de gloriosas chuteiras auriverdes.

(Analice Martins)

Rabugices

Relutei em escrever esse texto-desabafo. Achei que primeiro precisaria tentar ler a malfadada adaptação de “O Alienista”, de Machado de Assis, feita por Patrícia Engel Secco. O conto foi originalmente publicado em Papeis avulsos (1882) e posteriormente em edição separada como um livro independente. Como o assunto é polêmico e do meu mais absoluto interesse, tive receio de escrever de forma inflamada e sobretudo precipitada, já que não conhecia a escritora nem vira ainda a adaptação, cujo lançamento está previsto para este mês de junho. Imagino que, até a publicação destas minhas inquietações, o livro ainda não tenha chegado às mãos dos 600 mil leitores aos quais está destinado, sob os auspícios de projeto orçado em torno de 1,45 milhões de reais liberados pelo Ministério da Cultura por intermédio da lei Rouanet.

Então vamos lá: A grita tem sido grande e de peso. Já se pronunciaram pelos jornais, que eu saiba, Deonísio da Silva, João Cezar de Castro Rocha, José Miguel Wisnik, João Ubaldo Ribeiro. Imagino que pelas redes sociais também o bafafá esteja rolando. Para quem de nada ainda ouviu falar ou nada leu, basta um clique. Todos os artigos ou entrevistas a que estou me referindo estão na net. Mas antes vale a pena entender o portentoso (em números, que fique claro!) projeto da escritora-empresária como a apresentou, em seu artigo, José Maria e Silva, sociólogo e jornalista.

Patrícia Secco é autora de mais de 200 títulos de literatura infanto-juvenil (esse saco de gatos tão perigoso) com temas transversais ao gosto das escolas. Uma produção “literária” em escala industrial, convenhamos, caro leitor. Segundo fontes biográficas disponíveis pela internet, a jovem senhora trabalhou por mais de 10 anos no mercado financeiro. Depois do nascimento dos filhos, resolveu dedicar-se à função, ou diríamos carreira, de escritora. Cito: “Convencida de que só o investimento na Educação das crianças pode resultar em um mundo melhor, resolveu contribuir realizando o que gostava e sabia muito bem: escrever livros. Já fez 145 títulos, sempre abordando temas como cidadania, inclusão social e meio ambiente. A primeira tiragem de cada obra, cerca de 30 mil exemplares, é distribuída gratuitamente graças aos patrocínios que Patrícia busca. Depois, elas são comercializadas normalmente pela editora”. Só para dar uma ideia, há fontes que falam em 145, 200 e até 320 títulos. Céus!

Quero registrar que não li um livro sequer da autora, o que pode fazer de mim uma pobre leitora, além de articulista leviana. Mas, como não sou jornalista, não preciso necessariamente aferir fontes e entrevistar possíveis leitores, além de professores e pedagogos que trabalhem com seus livros. Quero mesmo é comentar o projeto.

O arranca-rabo está no que a autora julga ser sua maior contribuição à educação: levar o “bruxo do Cosme Velho” aos desvalidos da oportunidade de conhecê-lo porque não são capazes de entendê-lo nem de apreciar-lhe a grandeza estética. A solução proposta pela bem intencionada autora foi simplificar a linguagem machadiana, substituindo impunemente seu vocabulário, como se a linguagem, razão de ser da obra do bruxo, se resumisse apenas ao léxico. Socorro! Então multiplicam-se os assassinatos que investiguei pela net. Cito apenas um, pela exiguidade destas linhas, colhido novamente do artigo de José Maria e Silva: “Onde Machado de Assis escreve: ‘Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte’, Patrícia Secco traduz: ‘Uma curiosidade científica iluminou os olhos de Simão Bacamarte’. Além de destruir a musicalidade da frase, a troca de palavras assassina o sentido do texto: ‘volúpia’ tem uma forte conotação sexual, imprescindível para se compreender a paixão de Bacamarte pela ciência, algo que se perde completamente com a palavra ‘curiosidade’. Além do mais, palavras como ‘volúpia’ e ‘alumiar’ não precisam de tradução: a primeira pode ser lida na Bíblia ou ouvida em homilias católicas e pregações evangélicas e a segunda, em que pese fazer parte do repertório clássico da língua, é perfeitamente compreensível para qualquer lavrador que nunca frequentou escola, mas sabe perfeitamente o que é uma candeia alumiando”.

É óbvio que ela tenta defender seus propósitos civilizatórios, alegando que a causa é nobilíssima: “Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso. A ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil.” Ah, ignorantona, como diria Brás Cubas, simplórios e equivocados são os pressupostos de seu trabalho! Deveriam ter sido eles, aliás, as razões deste meu desabafo, mas podem ficar para um próximo.

É altamente prejudicial à saúde literária, podendo conduzir à morte de seu autor, a adaptação que substitua palavras impunemente, sem uma intenção estética. Cada palavra trocada, expressão suprimida ou sintaxe reorganizada mexe no centro de gravidade do literário. Altera sua semântica, seu equilíbrio instável. Cada palavra carrega e encerra em si uma dinâmica semântica própria, o que, de certa forma, torna toda versão para uma outra língua tarefa deliciosamente traidora. Ora, não seria muito mais civilizatório e universal, como princípio educacional formativo, promover o acesso do aluno-leitor ao “reino das palavras”, mostrar-lhe as chaves de entrada, encantá-lo com o uso do dicionário, ler com ele, torná-lo autônomo para construir suas interpretações? Não seria muito mais digno que o dinheiro público fosse de fato empregado para uma escola pública de qualidade e para todos onde Machado não fosse um estranho, um alienígena respeitável, mas cuja leitura dependesse de um código tradutor? Não seria mais profícuo que o governo brasileiro investisse na formação de professores-leitores, esses, sim, intérpretes autorizados à condução da ascese promovida pelo universo da leitura?

Além disso, outra questão que urgiria discutir é o que se esconde conceitualmente sob o trabalho da adaptação. O verbo de origem latina (adaptare) significa encaixar, articular. O Aurélio apresenta, entre outras, a acepção de “fazer acomodar à visão” e a de “modificar o texto de (obra literária), ou tornando-o mais acessível ao público a que se destina, ou transformando-o em peça teatral, script cinematográfico etc”. São duas definições que dão pano para as mangas. A primeira, se pensada no plano literário, parece-me uma iniciativa de propósitos ideológicos; a segunda é igualmente problemática, pois abriga a difícil tarefa de editar, condensar sem perder a tensão característica do texto literário, portanto sem falseamento, como o fez Carlos Heitor Cony adaptando clássicos da literatura universal para o público infanto-juvenil. Abriga também processos de releituras, exercícios igualmente literários, como o de Fernando Sabino que reescreveu Dom Casmurro mudando o foco narrativo para a 3ª pessoa. Escritores como Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Autran Dourado, Osman Lins reescreveram o conto “Missa do galo”, por exemplo. São trabalhos de criação, pois têm a intenção de explorar outros ângulos da obra, derivar perspectivas. O que observamos também nas releituras em outras linguagens, amplamente exploradas na relação da literatura com os quadrinhos, com o cinema, com as artes plásticas etc. Tudo isso é muito diferente da falsa iniciativa de adesão à leitura machadiana pretendida por Patrícia Secco.

Então, fino leitor, se gostaste das reflexões, pago-me da tarefa. Caso contrário, pago-te com um piparote.

(Analice Martins)

Estorvo na cena literária contemporânea

Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, assinalam dois momentos da literatura brasileira reveladores de uma tônica político-social, comprometida com a denúncia de um quadro de injustiças, desigualdades e violências. Este quadro encerra em sua base um antagonismo de classes, plasmado na imagem dos “dois brasis”.

Fabiano e Severino migram, forçosamente, buscando, em suas viagens/fugas, sobreviver à própria morte, dando, assim, algum sentido às suas vidas. Buscam, então, como ponto de chegada, a cidade grande, terra desconhecida, pouso de sentido, divisa de “novos horizontes”: “Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela”, afirma Fabiano em Vidas Secas

A cidade, nessas trajetórias, é um endosso da marginalização e da exclusão que os expulsara de suas terras originárias no interior do sertão nordestino. Os novos horizontes divisados reduplicam a situação original, motivadora da partida, das viagens empreendidas. Tais personagens desejam desfrutar da mesma condição de pertencimento, de enraizamento, metaforizadas nas imagens de “estar plantado, criar raízes, agarrar-se a terra”, recorrentes na obra de Graciliano Ramos. O deslocamento desses personagens, acossados pela seca e pela miséria, não rompe suas raízes, não supera o discurso localista, já que responde ao projeto modernista de configuração das diversidades regionais como parte da pretensão de construção identitária que vê, no desenho dessas diversidades, uma forma de escrever a nação.

Instituídos por uma estética realista, pautada em uma lógica discursiva que procura assegurar seu estatuto de verdade na ilusão de realidade, personagens e situações subordinam-se à linearidade temporal e ao encadeamento causa/consequência, elementos pré-figurados na estética realista canônica.

A narrativa brasileira contemporânea apresenta, em várias das suas recentes manifestações, uma tematização às avessas de algumas questões propostas pela linha de força do romance de 30. Estorvo, romance de Chico Buarque publicado em 1991, pode ser lido nessa espécie de contra-viagem.

É inegável a contraposição desses dois momentos da literatura brasileira: a literatura modernista imersa na construção de um projeto identitário nacional e a literatura contemporânea descomprometida desses projetos teleológicos, que, no entanto, nas entrelinhas, pode, por vezes, construir, por fragmentos e não mais por uma finalidade de totalização, a representação de um certo Brasil. Até mesmo porque, quando se fala de Chico Buarque, a pecha do descompromisso parece macular uma imagem do compositor, do cantor, do escritor, do cidadão Chico Buarque, soando inadmissível, de certa forma, para os pleitos de engajamento mais inculcados em nossa memória nacional.

Quem se depara com a leitura de Estorvo e de Budapeste (2003) perturba-se, turva-se, atropela-se, torporiza-se, estorva-se, com licença da paráfrase. Nessas obras em que parece haver uma antecipação de leitura pelo já apreendido e esperado é que a literatura se refaz e nos desafia.

Aos Fabianos e Severinos contrapõe-se agora um personagem sem nome, com poucas referências familiares, privado de uma memória que lhe permita reconhecer aqueles que imagina já ter visto, preso à urgência do cotidiano, do presente, amputado de projetos e de futuro, limitado ao seu “campo de visão”, preso a uma mala e por ela impulsionado a empreender uma fuga errática de uma situação não identificável, de um homem não identificado, saído, como diz o próprio personagem, há muito do seu campo de visão.

Em Estorvo, o personagem desloca-se num impulso de fuga, entrando e saindo de lugares aparentemente sem grandes vínculos causais ou sem nenhum, por espaços sempre repetidos, como a casa da irmã, a rodoviária, o sítio, a casa da ex-mulher, a casa da mãe etc. O personagem não pretende encontrar nenhum sentido ou significado nesses lugares, ao contrário do télos (finalidade) do alto modernismo.

Numa narrativa vertiginosa, em que os fatos se sucedem em velocidade estonteante, o personagem não mais realiza a viagem de Fabiano e Severino. Imerso na cidade, nos seus lugares não-identitários, não encontra neles nenhuma significação: a cidade nada significa para ele. Desenraizado no espaço geográfico e no tempo circular, vaga por eles, sempre em trânsito, fugindo de um inimigo sem contornos, num impasse sem soluções previsíveis, lógicas. Foge do nada ou de si mesmo, sem projetos, sem perspectivas, sem futuro.

(Analice Martins)

Em alguma parte, a poesia

Ainda que se pense, como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade, que toda luta com as palavras é vã, é sobre essa insistência que sempre se debruçou a literatura. A linguagem é uma tentativa de adentrar a realidade, apalpá-la, ordená-la para compreendê-la. Diferentemente do que acredita o senso comum, a linguagem não é espelho da realidade. Pelo contrário, ao trazer os fatos, objetos e sentimentos para a convenção do signo linguístico, que arbitra a relação entre significado (ideia) e significante (som), insere as coisas em uma ordem simbólica, na qual tudo que se diz, de certa forma, inventa-se, convenciona-se.

A linguagem literária é, nesse sentido, uma espécie de insurreição, desordenando a lógica dos signos linguísticos estabelecidos em uma língua determinada, a fim de oferecer aos leitores um outro modo de observação da realidade, ao nomeá-la de forma inesperada ou inusitada. Digamos, para simplificar, que a literatura, muito especialmente a poesia, é a reinvenção da invenção, a desordem que reordena. A literatura estabelece um código sobre outro. A literatura pode nascer dos espantos cotidianos, como propõe o livro de poemas Em alguma parte alguma (2010) do poeta Ferreira Gullar, mas dificilmente nascerá da gratuidade, da inspiração fortuita. Para achar, é preciso procurar, é preciso aguçar sentidos, é preciso esforço ininterrupto.

Foi também em 2010 que o poeta recebeu, além das muitas já recebidas ao longo de sua trajetória poética, a maior distinção em língua portuguesa concedida a um escritor pelo conjunto de sua obra: o prêmio Camões. Quando perguntado sobre o fato de ser reconhecido como o maior poeta vivo da literatura brasileira, respondeu, com modéstia e não sem algum humor, que tal designação também poderia dever-se à sua vida longeva. Gullar completou 80 anos em 2010.

O fato é que, Em alguma parte alguma, só reafirma a crença de que “o poeta/ não revela/ o oculto: inventa/ cria/ o que é dito”, pois que, antes de escrito, o poema “não é mais do que um aflito/ silêncio/ ante a página em branco”, ou seja, antes de ser o que é, palavra, “é a possibilidade/ do que não foi dito/ do que está/ por dizer/ e que/ por não ter sido dito/ não tem ser/ não é/ senão/ possibilidade de dizer”. Embora ciente de que “dizê-lo/ é não dizê-lo”, se não o dissesse, “não ouviria/ já que o poeta diz/ o que o leitor/ – se delirasse-/ diria”.

O questionamento deste estatuto da linguagem é a própria ontologia da literatura, não nos enganemos. Por isso talvez não seja equivocado afirmar que toda expressão literária seja metalinguística, que tenha a função direta ou indireta de dobrar-se sobre si mesma, de se olhar no espelho de seus signos para entender que a pretensão de tudo dizer é falha: “já que não é da linguagem/ dizer tudo/ ou é/ se se/ entender/ que o que foi dito/ é o que é/ e por isso/ nada há mais por dizer”.

A ideia, também recorrente na poética de um mais do que octogenário homem das letras, o poeta Manoel de Barros, de que o verbo tem que pegar delírio para dizer a realidade é a mesma presente em Gullar. Para este, “a coisa (o ser)/ repousa/ fora de toda/ fala/ ou ordem sintática”. Por isso, “delira” Gullar: “o perfume/ é um tipo de desordem/ a que o olfato/ põe ordem”. A existência palpável das coisas talvez nada signifique se não submetida a algum tipo de fala, como a poesia, que lhe dá uma existência possível, particular. Se a coisa repousa fora de toda fala, sua existência e sua percepção dependem, no entanto, de alguma linguagem que lhe dê forma.

É essa engenhosa reflexão sobre a linguagem poética que Gullar constrói meticulosamente, com aparente despretensão, em Alguma parte alguma, quando mostra que o jasmim, que é aroma apenas, fora do poema, é “amorfo sistema/ na noite do jardim”. O olfato o ordena, assim como o poema lhe dá forma. O poema fala o cheiro da flor e da fruta.

O poeta se debruça sobre a angústia de saber que a linguagem não pode tudo dizer, mas sabe igualmente que só ao dizer a realidade faz com que esta ganhe existência. Por isso, luta por erguer e entender o mundo em palavras, luta por esta consciência de si, que é se pensar e acredita que, com a morte, só será salvo do olvido pela palavra. A finitude das coisas é fato inelutável, como a pedra cuja “materialidade/ de “cousa/ não ousa”, porque a pedra existe em si e não para si, como o homem.

No poema “Uma pedra é uma pedra”, o poeta encerra toda sua poética: “o homem é uma/ aflição/ que repousa/ num corpo/ que ele/ de certo modo/ nega/ pois que esse corpo morre/ e assim/ o homem tenta/ livrar-se do fim/ que o atormenta/ e se inventa”, livrando-se, assim, do olvido. A literatura posterga a morte.

(Analice Martins)

Retorno possível: retratos da obra de João Gilberto Noll

Em Rastros do Verão, novela publicada em 1986, o personagem, que retorna a Porto Alegre para reencontrar o pai doente, pergunta-se sobre a história pessoal que poderia contar, depois de anos andando por aí: “Por essa geografia rarefeita quem tinha gerado comigo alguma memória duradoura?”

Berkeley em Bellagio, romance publicado em 2002, é dedicado a Porto Alegre, abre-se com o mote da origem, na epígrafe de Fabrício Carpinejar: “‘A morada em que nasci me habita’”. Diferentemente do retorno, abortado pela morte e pela desintegração, em Hotel Atlântico (1989), e do retorno, sem encontro e sem resgate, em Rastros de Verão, Berkeley em Bellagio acena para algum retorno passível de felicidade: “Digo-lhe que tenho o que festejar, que voltar para casa é o melhor da vida”.

Muito embora se saiba, de antemão, da impossibilidade de um retorno original, é o próprio João Gilberto Noll, em entrevista ao Caderno Ideias do Jornal do Brasil, em novembro de 2002, que registra o fato de o personagem acabar por “se reconciliar com sua história e geografia”, na vivência das pequenas culminâncias do cotidiano.

Berkeley em Bellagio assume intencionalmente uma discussão a respeito de pertencimentos, sejam os territoriais, sejam os afetivos e sexuais. Na condição efetiva de estrangeiro, o personagem João, agora nomeado e localizado, experimenta o deslocamento da própria língua, tendo que se apropriar de uma língua estrangeira, o inglês, no caso, para que pudesse testemunhar e protagonizar suas histórias. Como professor convidado da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e escritor agraciado com uma bolsa da Fundação Rockefeller, em Bellagio, na Itália, o protagonista experiencia o deslocamento agora voluntário e consentido, como condição de existência.

Em Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas, publicado em 2001, o sociólogo Michel Maffesoli defende a tese do nomadismo como uma constante antropológica, como uma reatualização do desejo de outro lugar, logo, do Outro. Isso incitaria o movimento de saída de si mesmo e, consequentemente, de existência. O desejo de outro lugar, atitude típica dos nômades, configuraria, nesta narrativa, outras etapas do estudo que o próprio Noll afirma fazer sobre a “… indeterminação das identidades em voo cego”. Neste sentido, Berkeley em Bellagio é sim um divisor de águas. Os deslocamentos perdem a cegueira e se fazem à luz das escolhas: tanto a de sair do país quanto a de voltar para casa, para cidade natal. Trata-se agora da personagem que enfrenta seus desterros de forma nomeada, tanto na paisagem estrangeira, por vezes inóspita, quanto na sexualidade assumida.

O imperativo do deslocamento, em trajetória sucessiva de múltiplas identificações, consolidou-se como tônica em Hotel Atlântico e A céu aberto (1996), por exemplo. O acirramento dessa errância sempre se fez sentir nas imagens dilaceradas que os esfíngicos e recorrentes espelhos nunca recuperaram. O espelho é também o tópos do estranhamento, do vazio que se preenche com uma imagem em ruínas, desintegrada e alheia,

Em Hotel Atlântico, o personagem não se reconhece no espelho, afirmando ser de “uma terra remota, obrigado a enfrentar diariamente as maiores intempéries”. Em A céu aberto, também diante de um espelho, o personagem percebe o esfacelamento de pertencimentos anteriores e à sua volta: “… uma vez ou outra chegava perto de um espelho e analisava que no outro lado além de mim não havia mais ninguém e eu possuía contornos me resguardando das formas que pareciam desmanchar em volta…”

Em face de uma total ausência de marcas territoriais, tais narrativas sempre sugeriram um descompromisso com localizações de qualquer natureza. São Paulo, Rio de Janeiro seriam qualquer cidade. Portanto, mapas com trajetos previamente configurados nada significavam: “No mapa o interior de Minas parecia um formigueiro de localidades. Os meus olhos desceram um pouco, entraram pelo interior de São Paulo, pararam no Paraná”. Ao passo que, em Berkeley em Bellagio, o personagem afirma, diante também de um espelho, querer voar para Porto Alegre, pela certeza talvez de tudo já ter visto antes.

Então, o que poderia, à primeira vista, parecer nota dissonante em uma sequência narrativa de esvaziamento de pertencimentos identitários e de personagens à deriva, à margem de estabelecimentos e de estabilidades, traduz, no fundo, a discussão contemporânea da coexistência de múltiplos pertencimentos. O dado novo na prosa de Noll parece ser a possibilidade de uma tal performatividade de caminhos sinalizar para algum retorno possível.

A saída receosa do cárcere/casa do próprio idioma, fundada no temor de não ter o que contar, a súbita amnésia linguística, quando do advento da fluência na língua inglesa, e a reapropriação da língua portuguesa, quando da nova condição de paternidade no retorno a Porto Alegre, são brilhante metáfora construída para deflagrar a ressemantização do espaço original, da familiaridade tão esgarçada.

Não é por outra razão que o domínio da língua inglesa é simultâneo à lembrança irruptiva de Porto Alegre. A foto amarela de uma tarde de verão na cidade é “memória subterrânea” que “não quer passar, tão forte quanto o súbito inglês”.

Longe, então, de se desdizer, ao acenar para uma felicidade possível em uma origem recriada, João Gilberto Noll insere um ponto a mais no estudo das suas identidades em voo cego: a certeza, compartilhada com o personagem, de que “… tudo o que vinga na vida vem em duplo, e pronto!”.

(Analice Martins)

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*Resenha feita originalmente para a Revista Grumo, nº 02, publicada em outubro de 2003.

Vamos comer a banana!

                  (Fonte: Jornal O Globo. Desenho de Adriana Calcanhoto) 

Ao gesto reativo do jogador Daniel Alves comendo a banana que lhe foi atirada em frequente atitude racista no futebol europeu, seguiram-se muitas manifestações. Das predominantemente imagéticas, como a de Neymar, no Facebook, com mensagem textual não menos polêmica, a crônicas e artigos em jornais e revistas.

Do que li gostei muito do texto de Adriana Calcanhoto, no domingo passado, no “Segundo Caderno” do jornal “O Globo”, pois se valeu de uma estratégia argumentativa inteligente. Ilustrado pelo desenho de uma banana, feito por ela para a edição especial de aniversário do jornal português “Público”, no dia 5 de março deste ano, dedicada ao Brasil com a manchete “Brasil descoberto”, deixou para uma quase nota de pé de página o desvelamento de suas intenções críticas, brincando com o leitor ingênuo nos irônicos aconselhamentos de bom comportamento que ocuparam seu espaço dominical quase na íntegra.  Pego apenas uma carona na discussão proposta por nossa cantora compositora escritora ilustradora e antropófaga Adriana Calcanhoto. Algo como “Vamos comer a banana”, devorá-la, degluti-la, mastigá-la, banquete(e)mo-nos!

Ainda que sem as pretensões que lhe foram louvadas, o gesto do jogador permitiu, na interpretação de Calcanhoto, uma resposta que deveria ser sempre nosso acerto de contas com o passado colonizador, como propôs Oswald de Andrade, em 1928, na inteligente metáfora de que a “alegria é a prova dos nove”. Ou como propôs no manifesto anterior, o da “Poesia Pau-Brasil”, deveríamos acertar os ponteiros do retardo causado por nosso passado colonial por meio de uma postura devoradora do inimigo, esta que Adriana Calcanhoto viu na banana que Daniel comeu, mastigou e deglutiu. Comeu o inimigo e se fortaleceu. Metabolizou sua força impositiva, triturou seu escárnio, deu-lhe uma resposta simbólica à altura da provocação.

Com essas atitudes a Europa só insiste em ignorar sua identidade cultural, seu passado escravagista, o saldo de suas ondas colonizadoras. Enfim, o que chamaram de processo civilizatório. Um passado que parece assombrá-la ainda hoje decorridos mais de 40 anos dos movimentos emancipacionistas de ex-colônias africanas sobretudo. No nosso caso, quase 200 anos. O Império disseminado trouxe, em contrapartida, o negro e o índio para o centro das metrópoles, onde reivindicaram seus direitos cidadãos, tomaram de assalto as casas paternas. E aí, cara pálida?

Somada a essa dinâmica migratória, fruto dos processos de descolonização, há toda uma geração já nascida em solo europeu, filha legítima dos que foram “comer” a Europa e “mulatizá-la”, além dos deslocamentos do “capitalismo do pobre”, de que fala o crítico Silviano Santiago, oriundos da globalização, do capitalismo tardio. A Europa, e não apenas a mediterrânea, é um caldeirão étnico-cultural, que precisa se olhar no espelho com urgência para se redescobrir e se reinventar.

A atitude racista dos torcedores é menos uma acusação de nossa condição miscigenada e equivocadamente associada a alguma espécie de primitivismo e mais o atestado de cegueira etnocêntrica de um continente que insiste em não querer enxergar as novas posições também marginais que pode ocupar e que se sabe destronado no novo cenário de correlação de forças político-econômicas.

Por isso, se a banana atirada quis associar o mulato Daniel Alves a um possível primitivismo da condição étnica de que seria oriundo, o tiro saiu pela culatra e só trouxe à tona a superioridade insustentável de um continente que perdeu a coroa. Por isso, vamos comer a banana, vamos comer o “inimigo” e repetir com Oswald de Andrade, evocado por Calcanhoto: “Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. (…) Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem”. Muito menos seu futebol de excelência.

(Analice Martins)

Depois do carnaval

 

Escrevi este depoimento atendendo originalmente a um pedido de reflexão acerca do cenário da educação básica na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ), o que envolve as esferas municipal, estadual e federal. Cada uma tem suas particularidades e idiossincrasias, embora um grande objetivo comum: oferecer formação cidadã a crianças, adolescentes e adultos, capacitando-os seja para o ingresso na vida universitária, seja para o mercado de trabalho.

O professor atua na área educacional. De certa forma, é um profissional da educação, mesmo que tal área envolva competências mais amplas do que as exigidas apenas à docência. Meu olhar é, portanto, relativo e circunscrito a um local de enunciação definido. Creio que isso não o invalide, pois a realidade nunca se nos apresenta em sua totalidade, mas tão somente a partir de ângulos e perspectivas.

O texto que segue não é uma análise técnica com dados estatísticos. Tampouco são achismos infundados. É, sobretudo, uma nota de lamento e pesar. Ei-lo:

A condição topográfica de planície não deveria nos aprisionar à platitude de horizontes. Nas últimas duas décadas, nossa cidade de fato se verticalizou, em especial no que diz respeito à construção civil. O que nossos olhos divisam quando nos aproximamos de sua entrada é um cenário bem distinto do de anos atrás. Muitos prédios e construções opulentas nos dão a impressão de que vivemos uma realidade de pujança. Mas, de perto, tudo se relativiza e desmorona. O crescimento esperado como consequência do favorecimento dos royalties, que nos coloca como o 13º maior PIB do Brasil, não alavancou nosso cenário cultural nem educacional. Quantas salas de teatro temos? Quantas de cinema? Quantas de música e exposição? Quais as políticas públicas de fomento à produção artística? Aliás, o que entendemos por arte? Quantas bibliotecas públicas temos por regiões ou bairros? Qual o piso salarial dos professores do município? Qual o repasse de verbas efetivo à educação? Qual o estado de nossas escolas? Como se davam as eleições para escolha de diretores das escolas municipais? Qual a real carência dos quadros de professores? Até quando ficaremos reféns de uma política de contratação e sucateamento? Onde estão as vagas dos professores concursados para a prefeitura? Qual o investimento em sua formação e capacitação?

De que nos ufanamos tanto afinal? Campos dos Goytacazes perdeu o bonde da história há muito. E ainda mais descarrilado estará esse bonde quanto menos fizermos por uma educação pública de qualidade. O ensino público, gratuito e laico, de qualidade, deveria ser um direito de todos e uma das principais diretrizes de qualquer gestão municipal. Às vezes, é preciso reafirmar o óbvio, sem medo de ser feliz.

O ensino público, se possível em horário integral, com condições reais de manutenção de alunos e professores nas escolas, poderia nos redimir da estagnação em que nos encontramos no plano educacional e cultural no município. Só a educação pública pode promover a convivência com o heterogêneo, o múltiplo e o díspar. É, então, o único caminho para nos verticalizar de fato. Deveria ser um norte a ser perseguido obstinadamente.

Atuo na esfera pública federal de ensino, acredito no heterogêneo, no diverso. Acredito nos embates. Luto para reproduzir a experiência feliz que tive enquanto aluna do ensino público em Campos durante o meu já distante ensino médio. Aquela experiência sacudiu o meu mundinho pequeno-burguês e afortunadamente letrado. Aquela experiência me fez ler o mundo com outros olhos. Esses que só uma educação pública de qualidade é capaz de nos oferecer e que desejo para todos.

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NOTA: O carnaval, na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ), ocorreu, em 2014, entre os dias 25 e 27 de abril.

O futuro da escola e a escola do futuro

Li, com desconfiança, há algumas semanas, a entrevista do neurocientista americano Stephen Kosslyn nas páginas amarelas da revista Veja. As discussões eram acerca da universidade do futuro e do projeto “Minerva”, a universidade 100% on-line de que ele é reitor desde o início de 2013. Este ambicioso projeto de educação na internet, pensado por uma turma egressa do Vale do Silício e financiada pelos mesmos investidores do Twitter e do eBay, parte do pressuposto de que o lugar da universidade e do professor no processo de ensino e aprendizagem sofreu deslocamentos a partir da revolução tecnológica do século XXI. Até aí tudo bem. Diagnóstico consensual.

A novidade não me parece estar, no entanto, como declara Kosslyn, nas estratégias de ensino que conduzam a aprendizagem por caminhos mais dialógicos e interativos, mais eficientes de acordo com a ciência cognitiva do que as repetições exaustivas e o apelo mnemônico excessivo. A construção do raciocínio crítico e imaginativo bem como de recursos associativos pode potencializar a inteligência humana ou, segundo Kosslyn, “exercitar os músculos mentais”. Tais conclusões da ciência cognitiva envolvem estudos nas áreas da neurociência, da psicologia e dos sistemas de computação no intuito de compreender o processamento de informações pelo cérebro. Tudo isso, embora muitas vezes distante da prática efetiva da realidade escolar, já estava presente na maiêutica socrática, no parto das ideias. Se a neurociência tem comprovado recentemente que o cérebro ativa áreas distintas para a construção de respostas diante de desafios, já o sabia a Antiguidade Clássica. Comentei em artigo do ano passado, “Os poderes da ficção”, a pesquisa publicada, na prestigiada revista Science, intitulada “Ler ficção literária melhora a teoria da mente”, que aponta conclusões semelhantes: o cérebro precisa ser desafiado pela falta de linearidade, pela quebra de expectativas, pelo não-dito, pelo estranhamento.

O que me incomodou na entrevista do pesquisador foram duas afirmações. Uma, que espero ter interpretado de forma equivocada, sobre a importância dos livros. Afirma Kosslyn que “a universidade voltada para o futuro não é fundamentada em livros, mas em ferramentas cognitivas. Ela dá aos alunos a bagagem intelectual para que consigam se adaptar a qualquer cargo, criar e ter sucesso pelo resto da vida”. Se ele se referiu à dimensão física do livro, é até compreensível, mas, se minimizou a importância da formação e da construção do conhecimento pela leitura em proveito de habilidades tais como comparar, associar, derivar, contrastar, resolver, penso que nenhuma “ferramenta cognitiva” deva prescindir das competências formativas. Podem até estar dissociadas no desempenho de algumas funções, mas não na formação escolar em qualquer segmento, nem mesmo no universitário.

Mais irritante me pareceu a pouca relevância dada ao convívio social: “Vejo o agrupamento de estudantes em um câmpus como algo cada vez menos importante”. Baseado na pesquisa do antropólogo inglês Robin Dunbar, assegura que, para que todos se conheçam em um grupo, ele não pode ter mais que 150 integrantes e que este seria o número ideal para a socialização. Portanto, Kosslyn prevê que a procura por universidades como Havard, Yale e Standford se dará, sobretudo, por conta do encontro com colegas interessantes e das redes de contatos estabelecidas. Enfim, um cenário tão matemático, tão previsível, tão explicável, quanto, para mim, estéril.

No domingo passado, no documentário “Educação.doc”, exibido pelo programa “Fantástico” da Rede Globo sobre a realidade das escolas públicas brasileiras, a filósofa e poeta Viviane Mosé falava entusiasticamente sobre o foco desta escola do futuro estar no convívio com o heterogêneo, o diverso, no embate dialógico, em que, digo eu, o professor deveria ocupar uma função primordial seja pela “expertise”, seja pela promoção das habilidades já referidas. Uma opinião que me pareceu bem mais acertada, já que de fato as informações estarão todas ao acesso de um clique, dispersas e democratizadas.

O futuro da escola não depende apenas de esforços locais e nacionais para construção de políticas públicas condizentes com distintas realidades educacionais, mas de um esforço de reflexão conjunta e de uma crença na sua urgência transformadora, na sua potência para alavancar e catapultar os indivíduos. Na escola do futuro, deveria haver, portanto, o espaço para o convívio amplo e irrestrito, diverso e plural, capaz de, pela alteridade, formar consciências críticas voltadas para o bem estar coletivo. Nela, deveria haver sempre um espaço inquestionável para a literatura, cujos poderes tenho insistentemente discutido. Por isso, faço minhas as palavras de Suzana Vargas, professora, escritora, poeta, fundadora da Estação da Letras, em entrevista à Revista O Globo também de domingo passado: “Tudo que fui, sou ou serei devo às descobertas que ela – a literatura – me proporcionou, sejam existenciais, políticas, amorosas ou profissionais (…) Os livros me salvaram. A literatura sempre explicou o mundo para mim. Quero levar esta espécie de fé a mais gente”.

(Analice Martins)

Lanterna mágica

Para nossos tempos velozes e furiosos, a lanterna mágica é um brinquedo démodé, estático demais, pouco interativo, embora tenha sido uma invenção bastante revolucionária, constituindo uma das formas rudimentares do cinema. Toda criança, nascida no século XXI, deveria ganhar uma lanterna mágica antes de qualquer dvd, tablet ou ipad. A experiência de ver o mundo em câmera lenta, em ritmo slow, por quadros cuja animação dependeria da sua imaginação em vez de algum dispositivo, representaria uma certa fantasmagoria sobre o mundo, forçando-a à contemplação antes da interatividade obsessiva.

A lanterna mágica está para a cidade moderna, assim como o caleidoscópio, talvez, para a cidade pós-moderna. Nossa memória pode assumir, no entanto, as duas funções. Pode seccionar e congelar ou pode embaralhar, em profusão de cores e associações, o que a película das retinas reteve em viagens.

Não gosto de filmar quando viajo. Provavelmente, por alguma cafonice do espírito. Mas fotografo.  Com máquinas digitais, não há mais poses, posições ou ângulos, nada escapa à fúria vertiginosa das lentes. Depois, sem nenhum incômodo, descartamos tudo que não nos interessa em busca da imagem perfeita. O descarte é a razão de ser da fotografia digital. Com isso nos tornamos menos atentos às cenas a serem capturadas. A máquina o fará por nós. Por um lado, isso é ótimo. Teremos um repertório de imagens à nossa disposição para reconstituirmos o passo a passo dos lugares visitados. Por outro, é um recurso danoso, pois torna nossa percepção preguiçosa e pouco aguda. Há quem se contente apenas com o álbum físico ou digital construído depois. Ou melhor, há quem só viaje porque o facebook existe.

Drummond tem um lindo poema chamado “Lanterna Mágica” em que Minas Gerais aparece em quadros pontuais, recortando sua memória afetiva dos lugares. Cada cidade, um poema. De cada poema, saltam imagens poderosas de que só a palavra – como tradução e invenção da realidade – seria capaz, muito mais do que uma imagem produzida por recursos técnicos ou tecnológicos.

Vou fazer aqui a lanterna mágica de minha viagem pela Rivièra Francesa e pelos Alpes Marítimos. Só com palavras, como o poeta. Mas tão-somente como exercício da minha memória afetiva de cronista e sem nenhuma pretensão literária:

I- As cidades encravadas nas montanhas, despencando sobre as encostas rochosas nem sempre parecem reais. Saint-Paul- de Vence, Biot, Èze, Mougins, Grasse sustentam-se no tempo, muito mais do que nas pedras. Algumas encasteladas por muros medievais e reféns do turismo avassalador. Suas existências, para mim, só saíram de certa fantasmagoria com o tilintar de talhares se descruzando à hora do almoço, quando o badalar dos sinos de uma igreja se fazia ouvir altivo, quando, pios, os fiéis ouviam as palavras do padre ou quando crianças chegavam das escolas, mãos dadas com os pais. Ali o cenário se desfazia, e os bastidores da vida real se insinuavam sorrateiros. Tudo quase sempre entre pedras.

II- É interessante ver Matisse, Renoir, Chagall, Léger, Braque e Picasso em museus que procuram reconstruir a história ou a passagem desses artistas em suas cidades. Há quem possa torcer o nariz e dizer que não estão lá as maiores obras desses pintores, mas estão suas histórias ou a reconstrução delas: esboços, desenhos, as naturezas mortas do início das trajetórias e as que lhes deram notoriedade, experimentos com outras linguagens, como a escultura e a cerâmica, o flerte com a literatura. Todas essas visitas me emocionaram. Registro as duas últimas: a relação de Braque com a literatura, seus desenhos para obras de vários escritores e seu caderno com desenhos e reflexões concisas. Às vezes, não mais do que uma oração sobre a criação artística. Tais como: “Eu adoro a regra que corrige a emoção” ou “É preciso escolher – uma coisa não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e verossímil”.  Picasso em Antibes. O que é o museu, que antes era Grimaldi e que passou a se chamar Picasso, em função das obras que o pintor deixou no período em que pôde usar suas instalações como ateliê? Estão lá, por exemplo, “Ulisses e as sereias” e “A alegria de viver” (“La joie de vivre”). O castelo despenca sobre o azul das águas de Antibes.

São museus que entrelaçam vida e obra à cidade e que recuperam os contextos originais da produção desses artistas.

III- Leituras do ”Le monde”: O êxito dos liceus franceses; a responsabilidade do governo francês no genocídio de Ruanda há 20 anos; o livro “L’Algèrie sur le vif” do fotógrafo Ramzy Bemsaadi; livros que discutem o que leva um homem a sacrificar tudo para dar ao mundo uma obra, romances que exploram o mistério da vocação artística , em especial, a literária.

IV- Chagall disse que ele era azul, como Rembrandt era marrom. A Rivièra Francesa é azul assim como o vinho, onipresente às mesas, é o rosé.

(Analice Matins)