Literatura e Futebol

Chama-se epopeia a narrativa que descreve e exalta fatos históricos e personagens heroicos. Trata-se de uma forma adequada à expressão de sentimentos coletivos, de cenários grandiosos, repletos de confrontos e combates. Pertencem, portanto, ao gênero épico os textos preocupados com a exaltação de conquistas em que comumente o narrador – outrora, o poeta -assume um tom bastante eloquente.

São conhecidas, na Antiguidade Clássica, a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Na última, o poeta narra a volta de Ulisses a Ítaca, sua casa, muitos anos depois de finda a guerra de Troia. Retorna vencedor, embora disfarçado de mendigo maltrapilho. Na Renascença, Os Lusíadas, de Camões, com seus mais de oito mil versos, dão conta não só da viagem de Vasco da Gama às Índias, mas da supremacia político-econômica do povo português, da sua ciência das técnicas de navegação, desbravando mares nunca dantes navegados e se apossando de terras remotas, lutando entre gentios com bravura e destemor.

A Modernidade é pouco afeita a narrativas desse porte. A matéria épica se tornou rarefeita; “a imitação, por meio do metro”, como propôs Aristóteles, “de seres de elevado valor moral ou psíquico” parece encontrar poucas correspondências nos tempos modernos que dão lugar a heróis muito mais tangíveis e realistas, porque conflituosos, dúbios, frágeis e sobretudo falíveis. Personagens que não carregam mais responsabilidades coletivas, porém, quando ainda o fazem, carregam a fragilidade da condição humana e não mais o peso do mito infalível.

Na Literatura, o século XVIII dá forma e estrutura ao gênero romanesco cujos personagens reinventam de um modo mais plausível a complexidade do ser humano, sua natureza instável, não retilínea, nem sempre movida por razões grandiosas e, sobretudo, passível de falir, mesmo que à revelia de sua bravura. De lá para cá, para nossos tempos atuais, a figura do herói como portador das virtudes de um povo, de uma nação, de uma coletividade, praticamente desapareceu. Em especial, apagou-se a necessidade de justificar a história pelo artifício literário de uma invenção grandiosa.

A literatura da segunda metade do século XIX e a do século XX preocuparam-se com o contingente, o episódico, as diversidades, o diferente, numa espécie de antirrelato da nação, de uma (contra)viagem, tema tão caro à literatura, talvez mesmo, sua condição fundadora.

Apesar dessas constatações, o imaginário coletivo (se é que tal instância existe) insiste em reconvocar, sempre que possível ou em momentos como esse da Copa do Mundo, a narrativa épica que diga não apenas da bravura de seu coletivo, mas que conte a saga das dificuldades vencidas, dos percalços ultrapassados, das peripécias contornadas, das estratégias empregadas para a vitória que nos sagre campeões mais uma vez. Em tempos ultramidiatizados e de “narrativas do self”, tudo isso se potencializa em feições, gestos, gritos, atitudes repetidas à exaustão.

O futebol, no Brasil, talvez não seja apenas uma paixão nacional, pois essas também são inventadas, mas uma necessidade épica que possa sustentar alguma grandeza que nos distinga para além da incontestável extensão territorial e dos igualmente incontestáveis índices de analfabetismo funcional, escolaridade, precariedade na saúde e violência urbana. Depositam-se nos jogadores da seleção os brados retumbantes de um povo que se quer heroico em algum sentido.

A emoção dos jogadores, às vezes convertida em lágrimas, é hipertrofiada pela obscenidade dos closes televisivos replicados de imediato nos vertiginosos tentáculos das redes sociais. O choro, como bem lembrou o editor de redação da Folha da Manhã, o jornalista Aluysio Abreu Barbosa, pode ser percebido como um momento de lirismo porque traduz a emotividade daqueles que criam a realidade, contaminando-a com sua subjetividade. As lágrimas foram perseguidas, porque pareceram exageradas e poderiam sugerir o descontrole que o herói épico não pode ter. Ora, o que foram e serão sempre exageradas são as lentes persecutórias da mídia, capazes de quase fazer escorrer a lágrima que só embaça os olhos dos jogadores.

Esse texto era para dizer da tristeza em ver, fora da Copa, o jogador Neymar: o camisa 10 que foi alçado, mesmo antes do início dos jogos, à condição de herói da saga em busca do hexacampeonanto. Franzino, não é na força física que encarna as virtudes do herói épico, mas naquilo em que o povo brasileiro quer se ver espalhado: a alegria, a irreverência, a genialidade e a humanidade que, por avesso que seja, tornou-o falível. Fosse Neymar um personagem épico, levantar-se-ia do chão e, mesmo com dores inimagináveis, “mais do que prometia a força humana”, estaria na linha de frente do combate da semifinal desta terça-feira.

Não vivemos tempos épicos, nossos heróis choram, e suas forças humanas não contam com a intervenção divina. Mas de qualquer forma: Avante!

(Analice Martins)

Intérprete de culturas

A escritora indo-britânica Jhumpa Lahiri estará na edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Filha de migrantes indianos, nascida em Londres, passou a maior parte de sua vida em Rhode Island, no norte dos Estados Unidos. Atualmente, vive em Roma. Já foi premiada com o Pulitzer de ficção. Além do recém-lançado Aguapés (2014), é autora do livro de contos Intérprete de males (2001) e do romance O xará (2004), todos traduzidos no Brasil. Sua ficção é atravessada pelas identidades cindidas, em constante negociação entre dois mundos, duas culturas. Elejo um de seus contos para breve comentário que sirva como convite à leitura de suas narrativas em trânsito.

O conto “Esta casa abençoada”, do livro Intérprete de males, revela pelo viés ficcional dois posicionamentos distintos diante da tradução entre culturas. Os contos do livro são ambientados ora na Índia ora nos Estados Unidos. Um jovem casal de ascendência indiana muda-se para uma casa nova em Connecticut. Ele, engenheiro formado em Boston, com carreira promissora. Ela, mestranda em Standford, pesquisadora de um poeta irlandês.  Filhos de famílias que já se conheciam: a dela, residente na Califórnia; a dele ainda em Calcutá, onde foram casar-se, por insistência dos pais.

A arrumação da casa nova traz à tona os diferentes posicionamentos de Sanjev e Twinkle frente à descoberta de um “zoológico bíblico” de imagens cristãs, nas palavras do marido. Enquanto a mulher Twinkle mantém uma curiosidade infantil, diante da descoberta, em todos os aposentos da casa, destas imagens cristãs, guardando-as num console, como num pequeno altar; Sanjev desespera-se diante da possível reação dos vizinhos a essa aceitação tolerante.

Se, para Sanjev, tais objetos estavam despidos da aura do sagrado, para Twinkle, jogá-los fora representaria uma espécie de sacrilégio, pela importância que deveriam constituir para os antigos moradores: “Sanjev examinou os objetos sobre o console. Intrigava-o o fato de que cada um deles à sua maneira era inteiramente ridículo. Sem dúvida, faltava-lhes a aura do sagrado. Intrigava-o também constatar que Twinkle, uma pessoa de bom gosto, estava encantada com eles. Aqueles objetos tinham algum significado para ela, mas não para ele. Pelo contrário, irritavam-no. ‘A gente devia ligar para o agente imobiliário. Para dizer que largaram todas essas porcarias aqui. Pedir para ele levar tudo embora’. ‘Ah, Sanj’, Twinkle gemeu. ‘Por favor. Eu ia ficar arrasada se a gente jogasse isso fora. Essas coisas eram claramente importantes para as pessoas que moravam aqui. Seria, sei lá, uma espécie de sacrilégio’”.

Na festa de inauguração da casa, alguns convidados se espantaram com a imagem da Virgem (Nossa Senhora) no jardim, ao que Sanjev replicou dizendo que, apesar de na Índia haver cristãos, eles não o eram. Twinkle, então, relatou aos convidados, alguns colegas de trabalho de Sanjev e casais indianos residentes em Connecticut, a aventura diária de descoberta desses objetos, dizendo ser o sótão a única parte da casa ainda não vistoriada. Foi para lá que todos se dirigiram para desespero de Sanjev. Foi lá também que encontraram um enorme busto de Cristo que Twinkle obrigou Sanjev a retirar de lá, como numa espécie de caça ao tesouro.

Interessante notar que a postura de Twinkle, para quem até a culinária indiana era trabalhosa (“detestava picar alho e descascar gengibre, e também não sabia usar o liquidificador”), é mais porosa, em todos os sentidos, com relação à manutenção das tradições indianas, ao passo que Sanjev resiste a qualquer prática de reposicionamento e de reinscrição diante das negociações impostas pelo pertencimento da escolha, já que constituíam uma segunda geração, filhos de imigrantes. Era ele, por exemplo, que, nos fins de semana, temperava óleo de mostarda com pedaços de canela e cravo para fazer um molho de curry decente. Até resistência à garrafa de vinagre encontrada na casa, ele faz, para depois reconhecer o sabor do peixe preparado por Twinkle com tal ingrediente.

No conto, as diferenças culturais são constantemente interpeladas, a condição de pertencer a duas culturas simultaneamente avulta como contingência inequívoca, porém tensa, já que em constante negociação. Portanto, o que poderia ser entendido como uma blasfêmia, no sentido simplista da deturpação do sagrado, é visto, pelas práticas de tradução cultural, como positividade de uma poética da reinscrição que vê no duplo pertencimento mais uma “benção” do que uma prática de recusas.

Por isso, talvez, possamos entender o final do conto de Jhumpa Lahiri, num sentido mais amplo, como circunstância inevitável das práticas tradutórias: “De fato Sanjev detestava o busto. Detestava seu tamanho desmesurado, sua superfície perfeitamente polida, seu valor inegável. Detestava a ideia de que aquele objeto estava em sua casa e que lhe pertencia”.

Talvez também se possa constatar, por meio da ficção de Jhumpa Lahiri, as complexas estratégias de inclusão requeridas pelas novas identidades culturais.

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*A íntegra deste meu artigo se encontra publicada na Revista Agenda Social do Programa de Políticas Sociais da UENF, disponível em versão eletrônica. Intitula-se “Benção ou Blasfêmia: aspectos da tradução”

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(Analice Martins)

Praia do Futuro

O novo filme do diretor Karim Aïnouz volta a explorar a temática da falta e do vazio existenciais. Mais do que de estradas e deslocamentos, seu cinema é feito de impasses entre idas e vindas, partidas e chegadas, entre o desterro que impulsiona e a busca que não se completa. Há sempre personagens em trânsito. Talvez o mesmo que marque sua trajetória pessoal entre outras culturas e países. Filho de uma brasileira e de um argelino, nascido em Fortaleza, sua produção cinematográfica toca fundo na mitologia brasileira do sertão, sem pretensões demasiadamente localistas, como se nos dissesse que o sertão está em nós: o seu vazio, a sua solidão e o seu inexplicável. A dimensão política desta filmografia não está na coletividade, mas sim no indivíduo, no privado de suas dores, que, no fundo, são variações de um abandono fantasmagórico.

Conhecido pela direção dos premiados Madame Satã (2002), o Céu de Suely (2006) e Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), Aïnouz sempre fez do corpo o espaço desses atravessamentos. Em Praia do Futuro (2014) não é diferente. A cena quase inicial mostra dois corpos que se debatem, se tocam e se perdem. Dividido em três partes, esta primeira, “O abraço do afogado”, bem traduz o risco da morte. Donato, interpretado pelo ator Wagner Moura, é o salva-vidas da praia do Futuro, em Fortaleza, que não consegue evitar a morte do turista alemão. O fracasso do salvamento, o primeiro em sua vida profissional, mexe com o personagem, acostumado a restituir a vida aos outros. A visita ao hospital onde se encontrava Konrad (Clemens Schick), o outro turista amigo do afogado, para devolver-lhe os pertencentes, deflagra a aproximação de ambos. A cena seguinte, depois de um corte bem ao gosto estilístico de Aïnouz, já revela a homossexualidade de Donato. Os dois transam no carro parado à beira da estrada.

As perdas vivenciadas pelos dois, se não justificam de todo a imediata relação, empurram-nos para o encontro que impulsiona a partida de Donato para Berlim. Ao deixar a terra natal, em princípio para uma aventura amorosa, Donato abandona a mãe e os irmãos. Em especial, o mais novo Ayrton (Jesuíta Barbosa) para quem ele era o herói Aquaman. Se todo deslocamento é, por um lado, a busca de algo novo, pode ser também a ruptura de laços arraigados. As cenas de extremo afeto entre Donato e Ayrton na primeira parte do filme são substituídas pelo reencontro em Berlim, uns dez anos depois, quando Ayrton cobra de Donato, entre socos, tapas e abraços, o abandono a que fora relegado.

Nesta terceira parte, “Um fantasma que fala alemão”, o Aquaman não é mais o herói dos mares, mas de um aquário gigante no qual trabalha. Aparentemente ambientado em Berlim, falando alemão e distante de Konrad, razão inicial de sua partida, Donato não é mais o herói da infância de Ayrton. É um fantasma errante, em fuga de si mesmo, sem contato com a família, sem saber da morte da mãe, sem raízes e sem um futuro claro, ou seja, um “Herói partido ao meio”, como se chama a segunda parte do filme. Sem vínculos maiores com a família e mesmo com o amante alemão, Donato continua carregando o mar e praia da terra natal. Em cena da primeira parte, afirma para Konrad que não conseguiria viver longe da praia. No frio e no inóspito das belas paisagens berlinenses, as estradas percorridas na moto de Konrad são o trânsito constante que parece preencher um vazio que não se explica. A pergunta que perpassa o filme não é propriamente de que ou de quem Donato foge. Da família, de si mesmo, de sua homossexualidade? A grande interrogação, mote da obra, é o que Donato busca nessa cidade estrangeira não menos desterrada para si do que a Fortaleza natal. Não à toa, as cenas últimas sugerem algum fiapo de resposta. Donato, Ayrton e Konrad percorrem juntos uma estrada e uma praia gelada e deserta do norte da Alemanha, como se a apontarem que as paisagens são móveis, não se fixam geograficamente. Permanecem, no entanto, no corpo e na memória.

A chegada de Ayrton a Berlim, a cobrança da ausência cruel que lhe fora imposta pelo irmão mais velho, misto de pai e herói, serve como elemento catalisador do roteiro e da sequência fílmica. Ayrton injeta sangue no aparente alheamento de Donato. Talvez, mais do que um acerto de contas com o passado, a presença inesperada de Ayrton, na terra estrangeira, seja algum preenchimento do futuro, aludido no título e na geografia do filme, mas tão esmaecido pela neblina de nossos vazios.

O hipócrita carimbo “avisado” timbrado nos ingressos de algumas salas de cinema no Brasil como advertência a cenas de sexo entre dois homens deveriam ser, antes, o aviso de que o cinema nacional “vai bem, obrigado”. Que Wagner Moura nos dignifica, como ator, de Capitão Nascimento a Donato, que Jesuíta Barbosa carrega no corpo franzino uma potência cênica invejável e que Karim Aïnouz faz cinema da melhor qualidade, livre de clichês e a quilômetros de distância da indústria da Globo Filmes.

(Analice Martins)

A ficção da Copa do Mundo

Eventos como a Copa do Mundo, capazes de reunir milhões de cidadãos de nacionalidades diferentes em torno de um sentimento de pertencimento, têm sempre um quê de ficção. Não porque construam uma mentira, mas tão-somente por fingirem um modo fixo de localização no tempo-espaço: ser de algum lugar e sentir esse lugar de uma forma uníssona.

Assim como as religiões, o futebol, sobretudo quando em época de campeonatos mundiais, recupera raízes às vezes esfaceladas pelo igualmente intenso sentimento de repulsa que uma nação pode nos despertar no dia a dia. Por isso, não é de estranhar que as mesmas vozes que vêm tomando de assalto as ruas, as rodovias, as praças e a esplanada desde 2013, por interesses diversos, reúnam-se, agora, em um só grito de entusiasmo: Vai que é sua, Brasil!

Do quase nada que entendo de futebol, percebo, no entanto, essa dimensão de pátria disseminada que em tempos de Copa se retrai numa espécie de fundamentalismo religioso. Jogadores que talvez passem a maior parte de suas vidas jogando em times estrangeiros sonham a esperança da convocação para, enfim, vestirem a camisa de seu país de origem e se consagrarem como campeões do mundo por sua seleção, bradando o hino e agasalhados pela bandeira nacional.

Mesmo para os que pouco sabem de futebol, não é difícil perceber a dinâmica do capital regendo os passos de nossas promessas futebolísticas. A internacionalização do capital e a irrefreável globalização dita as forças de deslocamento e transferência dos jogadores mundo afora. Os mais bem sucedidos são cidadãos do mundo, vestem grifes internacionais, deslizam em carros importados e jatinhos particulares, mas dizem sentir falta do arroz e do feijão brasileiros. Será?

Os menos afeitos a essa narrativa de saudade do arroz com feijão hão de dizer que até isso é marketing, faz parte do discurso localista do qual nenhum jogador brasileiro do Paris Saint-Germain, Barcelona, Real Madri, Milan, Bayern de Munique e não-sei-mais-o-quê pode abrir mão sob pena de não ser escalado por Felipão, o gaúcho bravo e macho, que simboliza nossa virilidade (ou seria vigor?) futebolísticos. Tem também gringo no nosso futebol, mas eles dizem gostar do nosso arroz com feijão e churrasco.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, as tradições são inventadas. Nesse sentido, elas também são mais ficção do que empiria. Ao contrário do que pensa o senso comum, a ficção não é o oposto da verdade. A ficção é uma outra forma de construção da verdade de nossos sentimentos e, mais legítima, porque marcada por nossas subjetividades. No caso das tradições, há ainda o fato de serem ficções compartilhadas por uma coletividade. Sem tal sentimento de pertença comum, não poderíamos falar em tradições e raízes nacionais.

A nação brasileira, politicamente falando, talvez tenha nascido com o grito de Dom Pedro na primeira metade do século XIX, mas quem de fato criou o Brasil com suas diversidades, suas múltiplas raízes, seu hibridismo e sua urbanidade incipiente foi o Romantismo de Gonçalves Dias, de Castro Alves e de José de Alencar. Devemos à literatura romântica o início da exposição de nossa constituição mestiça, ainda que vista por um sentimento europeizado.

Pois a Copa do Mundo, uma outra vez em solo brasileiro, é como a literatura: uma espécie de ficção na qual projetamos nossas raízes, nosso sentimento de pertencimento por vezes esgarçadinho e tão pobrinho para parafrasear o poeta Vinicius de Moraes. Embora cantemos a pátria como mãe gentil, já sabemos que essa rima desandou e que a acalentamos como patriazinha tão pobrinha.

Mas, nessas ocasiões, juntamos nossos esforços exauridos e gritamos com força atávica: Vai que é sua, Brasil! Da pátria sem sapatos como a sabemos, queremos vê-la de gloriosas chuteiras auriverdes.

(Analice Martins)

Rabugices

Relutei em escrever esse texto-desabafo. Achei que primeiro precisaria tentar ler a malfadada adaptação de “O Alienista”, de Machado de Assis, feita por Patrícia Engel Secco. O conto foi originalmente publicado em Papeis avulsos (1882) e posteriormente em edição separada como um livro independente. Como o assunto é polêmico e do meu mais absoluto interesse, tive receio de escrever de forma inflamada e sobretudo precipitada, já que não conhecia a escritora nem vira ainda a adaptação, cujo lançamento está previsto para este mês de junho. Imagino que, até a publicação destas minhas inquietações, o livro ainda não tenha chegado às mãos dos 600 mil leitores aos quais está destinado, sob os auspícios de projeto orçado em torno de 1,45 milhões de reais liberados pelo Ministério da Cultura por intermédio da lei Rouanet.

Então vamos lá: A grita tem sido grande e de peso. Já se pronunciaram pelos jornais, que eu saiba, Deonísio da Silva, João Cezar de Castro Rocha, José Miguel Wisnik, João Ubaldo Ribeiro. Imagino que pelas redes sociais também o bafafá esteja rolando. Para quem de nada ainda ouviu falar ou nada leu, basta um clique. Todos os artigos ou entrevistas a que estou me referindo estão na net. Mas antes vale a pena entender o portentoso (em números, que fique claro!) projeto da escritora-empresária como a apresentou, em seu artigo, José Maria e Silva, sociólogo e jornalista.

Patrícia Secco é autora de mais de 200 títulos de literatura infanto-juvenil (esse saco de gatos tão perigoso) com temas transversais ao gosto das escolas. Uma produção “literária” em escala industrial, convenhamos, caro leitor. Segundo fontes biográficas disponíveis pela internet, a jovem senhora trabalhou por mais de 10 anos no mercado financeiro. Depois do nascimento dos filhos, resolveu dedicar-se à função, ou diríamos carreira, de escritora. Cito: “Convencida de que só o investimento na Educação das crianças pode resultar em um mundo melhor, resolveu contribuir realizando o que gostava e sabia muito bem: escrever livros. Já fez 145 títulos, sempre abordando temas como cidadania, inclusão social e meio ambiente. A primeira tiragem de cada obra, cerca de 30 mil exemplares, é distribuída gratuitamente graças aos patrocínios que Patrícia busca. Depois, elas são comercializadas normalmente pela editora”. Só para dar uma ideia, há fontes que falam em 145, 200 e até 320 títulos. Céus!

Quero registrar que não li um livro sequer da autora, o que pode fazer de mim uma pobre leitora, além de articulista leviana. Mas, como não sou jornalista, não preciso necessariamente aferir fontes e entrevistar possíveis leitores, além de professores e pedagogos que trabalhem com seus livros. Quero mesmo é comentar o projeto.

O arranca-rabo está no que a autora julga ser sua maior contribuição à educação: levar o “bruxo do Cosme Velho” aos desvalidos da oportunidade de conhecê-lo porque não são capazes de entendê-lo nem de apreciar-lhe a grandeza estética. A solução proposta pela bem intencionada autora foi simplificar a linguagem machadiana, substituindo impunemente seu vocabulário, como se a linguagem, razão de ser da obra do bruxo, se resumisse apenas ao léxico. Socorro! Então multiplicam-se os assassinatos que investiguei pela net. Cito apenas um, pela exiguidade destas linhas, colhido novamente do artigo de José Maria e Silva: “Onde Machado de Assis escreve: ‘Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte’, Patrícia Secco traduz: ‘Uma curiosidade científica iluminou os olhos de Simão Bacamarte’. Além de destruir a musicalidade da frase, a troca de palavras assassina o sentido do texto: ‘volúpia’ tem uma forte conotação sexual, imprescindível para se compreender a paixão de Bacamarte pela ciência, algo que se perde completamente com a palavra ‘curiosidade’. Além do mais, palavras como ‘volúpia’ e ‘alumiar’ não precisam de tradução: a primeira pode ser lida na Bíblia ou ouvida em homilias católicas e pregações evangélicas e a segunda, em que pese fazer parte do repertório clássico da língua, é perfeitamente compreensível para qualquer lavrador que nunca frequentou escola, mas sabe perfeitamente o que é uma candeia alumiando”.

É óbvio que ela tenta defender seus propósitos civilizatórios, alegando que a causa é nobilíssima: “Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso. A ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil.” Ah, ignorantona, como diria Brás Cubas, simplórios e equivocados são os pressupostos de seu trabalho! Deveriam ter sido eles, aliás, as razões deste meu desabafo, mas podem ficar para um próximo.

É altamente prejudicial à saúde literária, podendo conduzir à morte de seu autor, a adaptação que substitua palavras impunemente, sem uma intenção estética. Cada palavra trocada, expressão suprimida ou sintaxe reorganizada mexe no centro de gravidade do literário. Altera sua semântica, seu equilíbrio instável. Cada palavra carrega e encerra em si uma dinâmica semântica própria, o que, de certa forma, torna toda versão para uma outra língua tarefa deliciosamente traidora. Ora, não seria muito mais civilizatório e universal, como princípio educacional formativo, promover o acesso do aluno-leitor ao “reino das palavras”, mostrar-lhe as chaves de entrada, encantá-lo com o uso do dicionário, ler com ele, torná-lo autônomo para construir suas interpretações? Não seria muito mais digno que o dinheiro público fosse de fato empregado para uma escola pública de qualidade e para todos onde Machado não fosse um estranho, um alienígena respeitável, mas cuja leitura dependesse de um código tradutor? Não seria mais profícuo que o governo brasileiro investisse na formação de professores-leitores, esses, sim, intérpretes autorizados à condução da ascese promovida pelo universo da leitura?

Além disso, outra questão que urgiria discutir é o que se esconde conceitualmente sob o trabalho da adaptação. O verbo de origem latina (adaptare) significa encaixar, articular. O Aurélio apresenta, entre outras, a acepção de “fazer acomodar à visão” e a de “modificar o texto de (obra literária), ou tornando-o mais acessível ao público a que se destina, ou transformando-o em peça teatral, script cinematográfico etc”. São duas definições que dão pano para as mangas. A primeira, se pensada no plano literário, parece-me uma iniciativa de propósitos ideológicos; a segunda é igualmente problemática, pois abriga a difícil tarefa de editar, condensar sem perder a tensão característica do texto literário, portanto sem falseamento, como o fez Carlos Heitor Cony adaptando clássicos da literatura universal para o público infanto-juvenil. Abriga também processos de releituras, exercícios igualmente literários, como o de Fernando Sabino que reescreveu Dom Casmurro mudando o foco narrativo para a 3ª pessoa. Escritores como Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Autran Dourado, Osman Lins reescreveram o conto “Missa do galo”, por exemplo. São trabalhos de criação, pois têm a intenção de explorar outros ângulos da obra, derivar perspectivas. O que observamos também nas releituras em outras linguagens, amplamente exploradas na relação da literatura com os quadrinhos, com o cinema, com as artes plásticas etc. Tudo isso é muito diferente da falsa iniciativa de adesão à leitura machadiana pretendida por Patrícia Secco.

Então, fino leitor, se gostaste das reflexões, pago-me da tarefa. Caso contrário, pago-te com um piparote.

(Analice Martins)

Estorvo na cena literária contemporânea

Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, assinalam dois momentos da literatura brasileira reveladores de uma tônica político-social, comprometida com a denúncia de um quadro de injustiças, desigualdades e violências. Este quadro encerra em sua base um antagonismo de classes, plasmado na imagem dos “dois brasis”.

Fabiano e Severino migram, forçosamente, buscando, em suas viagens/fugas, sobreviver à própria morte, dando, assim, algum sentido às suas vidas. Buscam, então, como ponto de chegada, a cidade grande, terra desconhecida, pouso de sentido, divisa de “novos horizontes”: “Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela”, afirma Fabiano em Vidas Secas

A cidade, nessas trajetórias, é um endosso da marginalização e da exclusão que os expulsara de suas terras originárias no interior do sertão nordestino. Os novos horizontes divisados reduplicam a situação original, motivadora da partida, das viagens empreendidas. Tais personagens desejam desfrutar da mesma condição de pertencimento, de enraizamento, metaforizadas nas imagens de “estar plantado, criar raízes, agarrar-se a terra”, recorrentes na obra de Graciliano Ramos. O deslocamento desses personagens, acossados pela seca e pela miséria, não rompe suas raízes, não supera o discurso localista, já que responde ao projeto modernista de configuração das diversidades regionais como parte da pretensão de construção identitária que vê, no desenho dessas diversidades, uma forma de escrever a nação.

Instituídos por uma estética realista, pautada em uma lógica discursiva que procura assegurar seu estatuto de verdade na ilusão de realidade, personagens e situações subordinam-se à linearidade temporal e ao encadeamento causa/consequência, elementos pré-figurados na estética realista canônica.

A narrativa brasileira contemporânea apresenta, em várias das suas recentes manifestações, uma tematização às avessas de algumas questões propostas pela linha de força do romance de 30. Estorvo, romance de Chico Buarque publicado em 1991, pode ser lido nessa espécie de contra-viagem.

É inegável a contraposição desses dois momentos da literatura brasileira: a literatura modernista imersa na construção de um projeto identitário nacional e a literatura contemporânea descomprometida desses projetos teleológicos, que, no entanto, nas entrelinhas, pode, por vezes, construir, por fragmentos e não mais por uma finalidade de totalização, a representação de um certo Brasil. Até mesmo porque, quando se fala de Chico Buarque, a pecha do descompromisso parece macular uma imagem do compositor, do cantor, do escritor, do cidadão Chico Buarque, soando inadmissível, de certa forma, para os pleitos de engajamento mais inculcados em nossa memória nacional.

Quem se depara com a leitura de Estorvo e de Budapeste (2003) perturba-se, turva-se, atropela-se, torporiza-se, estorva-se, com licença da paráfrase. Nessas obras em que parece haver uma antecipação de leitura pelo já apreendido e esperado é que a literatura se refaz e nos desafia.

Aos Fabianos e Severinos contrapõe-se agora um personagem sem nome, com poucas referências familiares, privado de uma memória que lhe permita reconhecer aqueles que imagina já ter visto, preso à urgência do cotidiano, do presente, amputado de projetos e de futuro, limitado ao seu “campo de visão”, preso a uma mala e por ela impulsionado a empreender uma fuga errática de uma situação não identificável, de um homem não identificado, saído, como diz o próprio personagem, há muito do seu campo de visão.

Em Estorvo, o personagem desloca-se num impulso de fuga, entrando e saindo de lugares aparentemente sem grandes vínculos causais ou sem nenhum, por espaços sempre repetidos, como a casa da irmã, a rodoviária, o sítio, a casa da ex-mulher, a casa da mãe etc. O personagem não pretende encontrar nenhum sentido ou significado nesses lugares, ao contrário do télos (finalidade) do alto modernismo.

Numa narrativa vertiginosa, em que os fatos se sucedem em velocidade estonteante, o personagem não mais realiza a viagem de Fabiano e Severino. Imerso na cidade, nos seus lugares não-identitários, não encontra neles nenhuma significação: a cidade nada significa para ele. Desenraizado no espaço geográfico e no tempo circular, vaga por eles, sempre em trânsito, fugindo de um inimigo sem contornos, num impasse sem soluções previsíveis, lógicas. Foge do nada ou de si mesmo, sem projetos, sem perspectivas, sem futuro.

(Analice Martins)

Em alguma parte, a poesia

Ainda que se pense, como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade, que toda luta com as palavras é vã, é sobre essa insistência que sempre se debruçou a literatura. A linguagem é uma tentativa de adentrar a realidade, apalpá-la, ordená-la para compreendê-la. Diferentemente do que acredita o senso comum, a linguagem não é espelho da realidade. Pelo contrário, ao trazer os fatos, objetos e sentimentos para a convenção do signo linguístico, que arbitra a relação entre significado (ideia) e significante (som), insere as coisas em uma ordem simbólica, na qual tudo que se diz, de certa forma, inventa-se, convenciona-se.

A linguagem literária é, nesse sentido, uma espécie de insurreição, desordenando a lógica dos signos linguísticos estabelecidos em uma língua determinada, a fim de oferecer aos leitores um outro modo de observação da realidade, ao nomeá-la de forma inesperada ou inusitada. Digamos, para simplificar, que a literatura, muito especialmente a poesia, é a reinvenção da invenção, a desordem que reordena. A literatura estabelece um código sobre outro. A literatura pode nascer dos espantos cotidianos, como propõe o livro de poemas Em alguma parte alguma (2010) do poeta Ferreira Gullar, mas dificilmente nascerá da gratuidade, da inspiração fortuita. Para achar, é preciso procurar, é preciso aguçar sentidos, é preciso esforço ininterrupto.

Foi também em 2010 que o poeta recebeu, além das muitas já recebidas ao longo de sua trajetória poética, a maior distinção em língua portuguesa concedida a um escritor pelo conjunto de sua obra: o prêmio Camões. Quando perguntado sobre o fato de ser reconhecido como o maior poeta vivo da literatura brasileira, respondeu, com modéstia e não sem algum humor, que tal designação também poderia dever-se à sua vida longeva. Gullar completou 80 anos em 2010.

O fato é que, Em alguma parte alguma, só reafirma a crença de que “o poeta/ não revela/ o oculto: inventa/ cria/ o que é dito”, pois que, antes de escrito, o poema “não é mais do que um aflito/ silêncio/ ante a página em branco”, ou seja, antes de ser o que é, palavra, “é a possibilidade/ do que não foi dito/ do que está/ por dizer/ e que/ por não ter sido dito/ não tem ser/ não é/ senão/ possibilidade de dizer”. Embora ciente de que “dizê-lo/ é não dizê-lo”, se não o dissesse, “não ouviria/ já que o poeta diz/ o que o leitor/ – se delirasse-/ diria”.

O questionamento deste estatuto da linguagem é a própria ontologia da literatura, não nos enganemos. Por isso talvez não seja equivocado afirmar que toda expressão literária seja metalinguística, que tenha a função direta ou indireta de dobrar-se sobre si mesma, de se olhar no espelho de seus signos para entender que a pretensão de tudo dizer é falha: “já que não é da linguagem/ dizer tudo/ ou é/ se se/ entender/ que o que foi dito/ é o que é/ e por isso/ nada há mais por dizer”.

A ideia, também recorrente na poética de um mais do que octogenário homem das letras, o poeta Manoel de Barros, de que o verbo tem que pegar delírio para dizer a realidade é a mesma presente em Gullar. Para este, “a coisa (o ser)/ repousa/ fora de toda/ fala/ ou ordem sintática”. Por isso, “delira” Gullar: “o perfume/ é um tipo de desordem/ a que o olfato/ põe ordem”. A existência palpável das coisas talvez nada signifique se não submetida a algum tipo de fala, como a poesia, que lhe dá uma existência possível, particular. Se a coisa repousa fora de toda fala, sua existência e sua percepção dependem, no entanto, de alguma linguagem que lhe dê forma.

É essa engenhosa reflexão sobre a linguagem poética que Gullar constrói meticulosamente, com aparente despretensão, em Alguma parte alguma, quando mostra que o jasmim, que é aroma apenas, fora do poema, é “amorfo sistema/ na noite do jardim”. O olfato o ordena, assim como o poema lhe dá forma. O poema fala o cheiro da flor e da fruta.

O poeta se debruça sobre a angústia de saber que a linguagem não pode tudo dizer, mas sabe igualmente que só ao dizer a realidade faz com que esta ganhe existência. Por isso, luta por erguer e entender o mundo em palavras, luta por esta consciência de si, que é se pensar e acredita que, com a morte, só será salvo do olvido pela palavra. A finitude das coisas é fato inelutável, como a pedra cuja “materialidade/ de “cousa/ não ousa”, porque a pedra existe em si e não para si, como o homem.

No poema “Uma pedra é uma pedra”, o poeta encerra toda sua poética: “o homem é uma/ aflição/ que repousa/ num corpo/ que ele/ de certo modo/ nega/ pois que esse corpo morre/ e assim/ o homem tenta/ livrar-se do fim/ que o atormenta/ e se inventa”, livrando-se, assim, do olvido. A literatura posterga a morte.

(Analice Martins)

Retorno possível: retratos da obra de João Gilberto Noll

Em Rastros do Verão, novela publicada em 1986, o personagem, que retorna a Porto Alegre para reencontrar o pai doente, pergunta-se sobre a história pessoal que poderia contar, depois de anos andando por aí: “Por essa geografia rarefeita quem tinha gerado comigo alguma memória duradoura?”

Berkeley em Bellagio, romance publicado em 2002, é dedicado a Porto Alegre, abre-se com o mote da origem, na epígrafe de Fabrício Carpinejar: “‘A morada em que nasci me habita’”. Diferentemente do retorno, abortado pela morte e pela desintegração, em Hotel Atlântico (1989), e do retorno, sem encontro e sem resgate, em Rastros de Verão, Berkeley em Bellagio acena para algum retorno passível de felicidade: “Digo-lhe que tenho o que festejar, que voltar para casa é o melhor da vida”.

Muito embora se saiba, de antemão, da impossibilidade de um retorno original, é o próprio João Gilberto Noll, em entrevista ao Caderno Ideias do Jornal do Brasil, em novembro de 2002, que registra o fato de o personagem acabar por “se reconciliar com sua história e geografia”, na vivência das pequenas culminâncias do cotidiano.

Berkeley em Bellagio assume intencionalmente uma discussão a respeito de pertencimentos, sejam os territoriais, sejam os afetivos e sexuais. Na condição efetiva de estrangeiro, o personagem João, agora nomeado e localizado, experimenta o deslocamento da própria língua, tendo que se apropriar de uma língua estrangeira, o inglês, no caso, para que pudesse testemunhar e protagonizar suas histórias. Como professor convidado da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e escritor agraciado com uma bolsa da Fundação Rockefeller, em Bellagio, na Itália, o protagonista experiencia o deslocamento agora voluntário e consentido, como condição de existência.

Em Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas, publicado em 2001, o sociólogo Michel Maffesoli defende a tese do nomadismo como uma constante antropológica, como uma reatualização do desejo de outro lugar, logo, do Outro. Isso incitaria o movimento de saída de si mesmo e, consequentemente, de existência. O desejo de outro lugar, atitude típica dos nômades, configuraria, nesta narrativa, outras etapas do estudo que o próprio Noll afirma fazer sobre a “… indeterminação das identidades em voo cego”. Neste sentido, Berkeley em Bellagio é sim um divisor de águas. Os deslocamentos perdem a cegueira e se fazem à luz das escolhas: tanto a de sair do país quanto a de voltar para casa, para cidade natal. Trata-se agora da personagem que enfrenta seus desterros de forma nomeada, tanto na paisagem estrangeira, por vezes inóspita, quanto na sexualidade assumida.

O imperativo do deslocamento, em trajetória sucessiva de múltiplas identificações, consolidou-se como tônica em Hotel Atlântico e A céu aberto (1996), por exemplo. O acirramento dessa errância sempre se fez sentir nas imagens dilaceradas que os esfíngicos e recorrentes espelhos nunca recuperaram. O espelho é também o tópos do estranhamento, do vazio que se preenche com uma imagem em ruínas, desintegrada e alheia,

Em Hotel Atlântico, o personagem não se reconhece no espelho, afirmando ser de “uma terra remota, obrigado a enfrentar diariamente as maiores intempéries”. Em A céu aberto, também diante de um espelho, o personagem percebe o esfacelamento de pertencimentos anteriores e à sua volta: “… uma vez ou outra chegava perto de um espelho e analisava que no outro lado além de mim não havia mais ninguém e eu possuía contornos me resguardando das formas que pareciam desmanchar em volta…”

Em face de uma total ausência de marcas territoriais, tais narrativas sempre sugeriram um descompromisso com localizações de qualquer natureza. São Paulo, Rio de Janeiro seriam qualquer cidade. Portanto, mapas com trajetos previamente configurados nada significavam: “No mapa o interior de Minas parecia um formigueiro de localidades. Os meus olhos desceram um pouco, entraram pelo interior de São Paulo, pararam no Paraná”. Ao passo que, em Berkeley em Bellagio, o personagem afirma, diante também de um espelho, querer voar para Porto Alegre, pela certeza talvez de tudo já ter visto antes.

Então, o que poderia, à primeira vista, parecer nota dissonante em uma sequência narrativa de esvaziamento de pertencimentos identitários e de personagens à deriva, à margem de estabelecimentos e de estabilidades, traduz, no fundo, a discussão contemporânea da coexistência de múltiplos pertencimentos. O dado novo na prosa de Noll parece ser a possibilidade de uma tal performatividade de caminhos sinalizar para algum retorno possível.

A saída receosa do cárcere/casa do próprio idioma, fundada no temor de não ter o que contar, a súbita amnésia linguística, quando do advento da fluência na língua inglesa, e a reapropriação da língua portuguesa, quando da nova condição de paternidade no retorno a Porto Alegre, são brilhante metáfora construída para deflagrar a ressemantização do espaço original, da familiaridade tão esgarçada.

Não é por outra razão que o domínio da língua inglesa é simultâneo à lembrança irruptiva de Porto Alegre. A foto amarela de uma tarde de verão na cidade é “memória subterrânea” que “não quer passar, tão forte quanto o súbito inglês”.

Longe, então, de se desdizer, ao acenar para uma felicidade possível em uma origem recriada, João Gilberto Noll insere um ponto a mais no estudo das suas identidades em voo cego: a certeza, compartilhada com o personagem, de que “… tudo o que vinga na vida vem em duplo, e pronto!”.

(Analice Martins)

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*Resenha feita originalmente para a Revista Grumo, nº 02, publicada em outubro de 2003.

Vamos comer a banana!

                  (Fonte: Jornal O Globo. Desenho de Adriana Calcanhoto) 

Ao gesto reativo do jogador Daniel Alves comendo a banana que lhe foi atirada em frequente atitude racista no futebol europeu, seguiram-se muitas manifestações. Das predominantemente imagéticas, como a de Neymar, no Facebook, com mensagem textual não menos polêmica, a crônicas e artigos em jornais e revistas.

Do que li gostei muito do texto de Adriana Calcanhoto, no domingo passado, no “Segundo Caderno” do jornal “O Globo”, pois se valeu de uma estratégia argumentativa inteligente. Ilustrado pelo desenho de uma banana, feito por ela para a edição especial de aniversário do jornal português “Público”, no dia 5 de março deste ano, dedicada ao Brasil com a manchete “Brasil descoberto”, deixou para uma quase nota de pé de página o desvelamento de suas intenções críticas, brincando com o leitor ingênuo nos irônicos aconselhamentos de bom comportamento que ocuparam seu espaço dominical quase na íntegra.  Pego apenas uma carona na discussão proposta por nossa cantora compositora escritora ilustradora e antropófaga Adriana Calcanhoto. Algo como “Vamos comer a banana”, devorá-la, degluti-la, mastigá-la, banquete(e)mo-nos!

Ainda que sem as pretensões que lhe foram louvadas, o gesto do jogador permitiu, na interpretação de Calcanhoto, uma resposta que deveria ser sempre nosso acerto de contas com o passado colonizador, como propôs Oswald de Andrade, em 1928, na inteligente metáfora de que a “alegria é a prova dos nove”. Ou como propôs no manifesto anterior, o da “Poesia Pau-Brasil”, deveríamos acertar os ponteiros do retardo causado por nosso passado colonial por meio de uma postura devoradora do inimigo, esta que Adriana Calcanhoto viu na banana que Daniel comeu, mastigou e deglutiu. Comeu o inimigo e se fortaleceu. Metabolizou sua força impositiva, triturou seu escárnio, deu-lhe uma resposta simbólica à altura da provocação.

Com essas atitudes a Europa só insiste em ignorar sua identidade cultural, seu passado escravagista, o saldo de suas ondas colonizadoras. Enfim, o que chamaram de processo civilizatório. Um passado que parece assombrá-la ainda hoje decorridos mais de 40 anos dos movimentos emancipacionistas de ex-colônias africanas sobretudo. No nosso caso, quase 200 anos. O Império disseminado trouxe, em contrapartida, o negro e o índio para o centro das metrópoles, onde reivindicaram seus direitos cidadãos, tomaram de assalto as casas paternas. E aí, cara pálida?

Somada a essa dinâmica migratória, fruto dos processos de descolonização, há toda uma geração já nascida em solo europeu, filha legítima dos que foram “comer” a Europa e “mulatizá-la”, além dos deslocamentos do “capitalismo do pobre”, de que fala o crítico Silviano Santiago, oriundos da globalização, do capitalismo tardio. A Europa, e não apenas a mediterrânea, é um caldeirão étnico-cultural, que precisa se olhar no espelho com urgência para se redescobrir e se reinventar.

A atitude racista dos torcedores é menos uma acusação de nossa condição miscigenada e equivocadamente associada a alguma espécie de primitivismo e mais o atestado de cegueira etnocêntrica de um continente que insiste em não querer enxergar as novas posições também marginais que pode ocupar e que se sabe destronado no novo cenário de correlação de forças político-econômicas.

Por isso, se a banana atirada quis associar o mulato Daniel Alves a um possível primitivismo da condição étnica de que seria oriundo, o tiro saiu pela culatra e só trouxe à tona a superioridade insustentável de um continente que perdeu a coroa. Por isso, vamos comer a banana, vamos comer o “inimigo” e repetir com Oswald de Andrade, evocado por Calcanhoto: “Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. (…) Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem”. Muito menos seu futebol de excelência.

(Analice Martins)

Depois do carnaval

 

Escrevi este depoimento atendendo originalmente a um pedido de reflexão acerca do cenário da educação básica na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ), o que envolve as esferas municipal, estadual e federal. Cada uma tem suas particularidades e idiossincrasias, embora um grande objetivo comum: oferecer formação cidadã a crianças, adolescentes e adultos, capacitando-os seja para o ingresso na vida universitária, seja para o mercado de trabalho.

O professor atua na área educacional. De certa forma, é um profissional da educação, mesmo que tal área envolva competências mais amplas do que as exigidas apenas à docência. Meu olhar é, portanto, relativo e circunscrito a um local de enunciação definido. Creio que isso não o invalide, pois a realidade nunca se nos apresenta em sua totalidade, mas tão somente a partir de ângulos e perspectivas.

O texto que segue não é uma análise técnica com dados estatísticos. Tampouco são achismos infundados. É, sobretudo, uma nota de lamento e pesar. Ei-lo:

A condição topográfica de planície não deveria nos aprisionar à platitude de horizontes. Nas últimas duas décadas, nossa cidade de fato se verticalizou, em especial no que diz respeito à construção civil. O que nossos olhos divisam quando nos aproximamos de sua entrada é um cenário bem distinto do de anos atrás. Muitos prédios e construções opulentas nos dão a impressão de que vivemos uma realidade de pujança. Mas, de perto, tudo se relativiza e desmorona. O crescimento esperado como consequência do favorecimento dos royalties, que nos coloca como o 13º maior PIB do Brasil, não alavancou nosso cenário cultural nem educacional. Quantas salas de teatro temos? Quantas de cinema? Quantas de música e exposição? Quais as políticas públicas de fomento à produção artística? Aliás, o que entendemos por arte? Quantas bibliotecas públicas temos por regiões ou bairros? Qual o piso salarial dos professores do município? Qual o repasse de verbas efetivo à educação? Qual o estado de nossas escolas? Como se davam as eleições para escolha de diretores das escolas municipais? Qual a real carência dos quadros de professores? Até quando ficaremos reféns de uma política de contratação e sucateamento? Onde estão as vagas dos professores concursados para a prefeitura? Qual o investimento em sua formação e capacitação?

De que nos ufanamos tanto afinal? Campos dos Goytacazes perdeu o bonde da história há muito. E ainda mais descarrilado estará esse bonde quanto menos fizermos por uma educação pública de qualidade. O ensino público, gratuito e laico, de qualidade, deveria ser um direito de todos e uma das principais diretrizes de qualquer gestão municipal. Às vezes, é preciso reafirmar o óbvio, sem medo de ser feliz.

O ensino público, se possível em horário integral, com condições reais de manutenção de alunos e professores nas escolas, poderia nos redimir da estagnação em que nos encontramos no plano educacional e cultural no município. Só a educação pública pode promover a convivência com o heterogêneo, o múltiplo e o díspar. É, então, o único caminho para nos verticalizar de fato. Deveria ser um norte a ser perseguido obstinadamente.

Atuo na esfera pública federal de ensino, acredito no heterogêneo, no diverso. Acredito nos embates. Luto para reproduzir a experiência feliz que tive enquanto aluna do ensino público em Campos durante o meu já distante ensino médio. Aquela experiência sacudiu o meu mundinho pequeno-burguês e afortunadamente letrado. Aquela experiência me fez ler o mundo com outros olhos. Esses que só uma educação pública de qualidade é capaz de nos oferecer e que desejo para todos.

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NOTA: O carnaval, na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ), ocorreu, em 2014, entre os dias 25 e 27 de abril.