A arte cria o fato

De maneira geral costumamos entender o objeto artístico como a representação de fatos da realidade concreta ou como a materialização da atividade humana da imaginação. A manifestação artística, nesse sentido, estaria atrelada a eventos que a precedem. Sua natureza, por mais verossímil que pareça, não é real. Trata-se de uma eficiente estratégia de fingimento por meio de uma linguagem sígnica.

A autonomia que Aristóteles conferiu a este procedimento na Antiguidade Clássica é até hoje responsável pelo redimensionamento da legítima importância social e estética da arte. Aristóteles a retira do limbo platônico, da condição de mera cópia da realidade, e a reposiciona como uma “virtualidade criadora”. Então, para as teorias ocidentais, a arte é um mecanismo de criação e não somente de espelhamento.

Criar, portanto, seria conferir ilusão de realidade não apenas ao que já foi ou está acontecendo, mas ao que pode jamais ter acontecido. Isso faz da arte uma atividade perigosa e autônoma. Talvez, por essa razão, Platão tenha expulsado os poetas de sua República. A criação artística remete ao emprego de um conjunto de técnicas, o que a afasta do espontaneísmo e do naturalismo corriqueiros. Quando se assemelha demais à natureza, aos fatos, objetos e sentimentos que nos rodeiam, foi porque o artista soube, como já cantara Bilac, “disfarçar na forma o emprego do esforço”. Quanto mais “natural”, mais “artificial”, poderíamos concluir. Assim são os artifícios empregados pelo artista que podem conduzir a alma do observador a elevados estados de reflexão. Logo, a arte é absolutamente necessária.

Não há nada de novo nessas minhas considerações, mas me sinto impulsionada a dizê-las toda vez que leio ou ouço algo como “o cinema cria o fato, o evento”. Creio ter sido mais ou menos isso que dizia um canal fechado da televisão francesa. Eu sequer estava atenta ao que se passava, mas a proposição me chamou a atenção para a associação que fiz no título desta crônica.

Estou em Nice, cidade do sul da França banhada pelo Mediterrâneo, a mais importante da Côte d’Azur, célebre pelo sol, pela luz, pelas cores e pelos artistas que passaram ou moraram por aqui.  Seu mar turquesa não deixa margens a dúvidas. Dois grandes museus guardam parte das obras de Marc Chagall e de Matisse. Nas redondezas, em Biot, há o dedicado à obra de Fernand Léger; outro, em Antibes, dedicado à parte da obra de Picasso; a Fundação Maeght, em Saint-Paul-de-Vence, reunindo, além de Chagall e Léger, Braque, Miró etc. Cézanne, em Aix em Provence. Enfim, artistas que fizeram parte do que hoje chamamos de vanguardas históricas, responsáveis por “épater les bourgeois” e por criarem um divisor de águas no mundo das artes plásticas, em especial da pintura, no início do século XX.

Não à toa os artistas brasileiros Tarsila do Amaral, Anita Malfati, Portinari depois, todos que reinventaram antropofagicamente a pintura brasileira, o fizeram a partir do contato direto com as vanguardas europeias, conferindo às nossas artes uma circulação universal, sem entrincheiramentos nacionalistas e sectários. Ou seja, a dimensão expressa adequadamente no título de um ensaio de Silviano Santiago: “Apesar de dependente, universal”. Reflexão complementar à ideia de originalidade como um processo de apropriação criativo tributário do antropofagismo modernista.

Tais considerações são apenas um pretexto para dizer, sem cegueiras colonizadoras, que a experiência do contato “direto”- tanto quanto possível – com as obras desses artistas é “bouleversante”, isto é, perturbadora. Para além da mediação da reprodução técnica, das fotos ou dos arquivos digitais, a experiência da cor, do relevo das camadas da tinta, das dimensões da tela, do volume das esculturas, do risco dos desenhos, é insubstituível. Sei que é temeroso dizer isso em tempos de democratização digital e de acesso a bens simbólicos remotos, sem parecer pernóstica. Mas é verdade, ora! Para tanto, não é preciso apenas se deslocar para fora, mas também para dentro, como fizeram os modernistas em suas caravanas ao interior do Brasil, cansados de verem apenas por tabela, sentirem pelo que lhes contavam, como disse o poeta Mario de Andrade em “Acalanto do seringueiro”. Mais do que se deslocar, é preciso, como advertiu o outro Andrade, Oswald, ter olhos livres para ver. É preciso se deixar assombrar.

Pois foi assim que me senti ontem no museu Marc Chagall, diante daquelas telas acintosamente coloridas, para lá de todos os “ismos”. Muitas com temas pouco realistas, mas incrivelmente reais. Sim, a arte cria o fato. Os temas da revolução bolchevique, das guerras, da cidade natal e os bíblicos estão lá nas obras desse russo naturalizado francês. Uns como outros, acontecidos ou não, são expressivamente reais. Pelo emprego da técnica aliada à subjetividade do artista, tudo é real, tudo é verdade: o paraíso, Adão, Eva, a criação do mundo segundo a mitologia bíblica. Tudo também é vivamente erótico, como a série “O Cântico dos Cânticos”.

Por isso, ainda quando surreal, a arte nos faz crer como possível o que é representado em cores, traços, formas. A arte, definitivamente, cria o fato.

(Analice Martins)

A carta e o tempo

 

As cartas – como as escrevíamos até algumas décadas atrás – deixaram de existir. Não apenas porque abandonaram a forma manuscrita, mas sobretudo porque perderam sua relação com o tempo da espera. A celeridade contemporânea abomina qualquer retardo de informações, relatos e pedidos. A carta como recurso comunicativo ficou à margem do tempo. A migração de suas funções para outros meios e suportes roubou-lhe um certo status. Quando manuscritas, parecem peças arqueológicas.

A carta é um gênero textual que, podendo valer-se do modo descritivo, narrativo ou argumentativo, organiza um interessante quadro de comunicação, no qual o interlocutor permanece silenciado até que, assumindo a condição de locutor (emissor), estabeleça um moroso diálogo: aquele em que cada um fala a seu tempo, ou melhor, a cada carta, a qual, por sua vez, inclui o tempo de sua gestação e de seu envio. As cartas são deliciosamente lentas. Mesmo que agilizemos as respostas, elas ainda cumprirão o tempo dos correios e das adversidades físicas de seu trajeto. A carta pode não chegar e, se chegar, pode não ter uma resposta imediata. A carta definitivamente é offline.

Pois é justamente essa “não sincronia” que constitui sua essência comunicativa. Podemos ansiar pelas respostas, imaginá-las, inventá-las, não as lermos. A presença física de uma carta não é impositiva como um torpedo, uma conversa no facebook, no whatsapp ou em um chat com aqueles insuportáveis barulhinhos a nos cobrarem respostas na velocidade de um suspiro. As cartas são silenciosas. Nelas, as respostas não podem ser monitoradas pelos que as escreveram. As cartas só se materializam quando abertas, podendo permanecer para sempre suspensas e enigmáticas, quando lacradas. Se perdidas, extraviadas, queimadas ainda fechadas, levam consigo gestos comunicativos talvez irreproduzíveis. Daí também o seu mistério.

As epístolas gozam de prestígio na literatura, além de ocuparam lugar de destaque no Novo Testamento. Como professora, acho o referido gênero importantíssimo por inúmeras razões, como, por exemplo, a necessidade de adequação do registro linguístico para o cumprimento de sua eficiência. Fundamental saber para quem escrevemos e que proximidade ou distância devemos empregar. Importante também estabelecer sua natureza: descritiva, narrativa, persuasiva, exortativa etc. Forjar uma situação comunicativa, por intermédio da escrita de uma carta, parece-me um importante exercício de expressão e de produção textual. Uma carta pode ter inúmeras funções: ser meramente um recurso expressivo que dê vazão às nossas emoções; ser uma estratégia apelativa, de convencimento; ser a matéria própria de nossas reflexões.

As cartas podem ter um caráter documental e comprobatório, mesmo quando profundamente intimistas. A sanha pelo biográfico cria uma mitologia dos baús, das gavetas escondidas, dos fundos falsos, dos arquivos pessoais. Aquilo que foi comezinho ou apenas uma troca de confidências pode tornar-se significativo registro linguístico, histórico, cultural. Uma carta pode valer ouro. Lamento pelos que nunca tiveram a experiência temporal de sua gestação, remessa ou espera. O tempo de sua travessia também nos atravessa e transporta, tornando-nos mais imaginativos e menos reativos.

Digo tudo isso, pois estou engasgada pela vontade de escrever uma: esta que faço agora imaginando poder abraçar com palavras minha interlocutora querida que já partiu deste mundo. Cartas para os que já se foram, se tornadas públicas, são cartas com múltiplos destinatários. Minha mãe faria 80 anos hoje, dia 2 de abril, e, na impossibilidade de cruzar a varanda de sua casa e acordá-la com um beijo na testa, fico fingindo para mim mesma que ouviria sua voz agradecendo encabulada os muitos festejos que sempre recebeu. Eis a cartinha:

“Mãe, meu mundo ficou irremediavelmente mais triste sem você. A senhora nos ensinou que a morte era só uma passagem e que a vida, em abundância, era outra que não a da matéria vã. Mas, mãezinha, é tão difícil ter ficado sem a sua voz, os seus abraços e carinhos, sem a sua presença acolhedora. Não devo ter retido com atenção seus ensinamentos. Talvez, por isso, a saudade insista em me rondar dia após dia. Coloquei uma foto sua em uma das estantes de meu escritório, onde invariavelmente passo longas horas. Ficou em uma posição acima dos meus olhos, pois, assim, quando os levanto para pensar mais profundo, sorrir ou suspirar, é sempre do mais alto que você me olha e me guarda. Foi uma foto que ganhei de uma grande amiga da família. Seus olhos estão contemplativos e serenos, como sempre, um meio sorriso esboçado nos lábios, um tom docemente grisalho emoldura o seu rosto. Olho para ela todos os dias e lembro-me, como agora, da crônica de Drummond – “Fala, amendoeira” – que a senhora cedo me fez ler, registrando a beleza do neologismo verbal criado pelo poeta para dizer como deveríamos encarar a vida e a passagem do tempo: “Outoniza-te com dignidade”, diz a amendoeira ao poeta. Ah, mãezinha, outra não foi sua trajetória. Quisera eu saber assim viver.

(Analice Martins)                                                                                   

Tá lá o corpo estendido no chão

Está em nós a imagem tenebrosa, escancarada pelas mídias onipresentes, do corpo de Cláudia da Silva Ferreira arrastado por uma viatura da polícia, no domingo, dia 16. Está em nós o semblante indignado da jovem filha de Cacau tendo, tão prematuramente, que escancarar sua dor, sua indignação. Estão em nós os olhares aturdidos de crianças órfãs. Está em nós a voz branda de um marido perplexo. Estão em nós as perguntas que não podem calar: Por que e até quando?

Tá lá o corpo estendido no chão.

Vontade de gritar os versos de Castro Alves, no poema “O Navio Negreiro”: “Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, senhor Deus!/ Se é loucura… se é verdade/ Tanto horror perante os céus?!/ Ó mar, por que não apagas/ Co’a a esponja de tuas vagas/ De teu manto este borrão?” Vivemos o terrível borrão da iniquidade a céu aberto, seguido da impunidade reinante. A barbárie não é um dado contemporâneo. A barbárie sempre foi o borrão dos processos civilizatórios. A barbárie saiu da história distante, livresca, para atravessar a crônica cotidiana das cidades brasileiras de médio e grande porte. Temos 16 cidades entre as 50 mais violentas do mundo, de acordo com o levantamento elaborado pela ONG mexicana Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal AC.

Tá lá o corpo estendido no chão.

Cláudia saía para trabalhar nas madrugadas de todos os dias. Cláudia saiu para comprar pão. Cláudia, como o leiteiro do poema de Drummond, que cumpria sua rotina diária de entregar “leite bom para gente ruim”, foi morta na calada da manhãzinha. Estampido surdo ao amanhecer. “Há pouco leite no país,/ é preciso entregá-lo cedo./ Há muita sede no país,/ é preciso entregá-lo cedo./ Há no país uma legenda,/ que ladrão se mata com tiro.” No poema-crônica de uma cidade em ritmo de crescimento e urbanização, o morador em pânico confunde o inocente leiteiro com “os ladrões que infestam o bairro”, mas exclama: “Meu Deus, matei um inocente./ Bala que mata gatuno/ também serve pra furtar/ a vida de nosso irmão”. Quem há de gritar, em nosso cenário de impunidade, “Meu Deus, matei uma inocente?” O leiteiro perdeu a pressa que tinha, diz o poeta. Cláudia perdeu o pão – a vida – que multiplicava prodigamente entre os seus.

Tá lá o corpo estendido no chão.

O horror nos empobrece, diz o filósofo alemão Walter Benjamin sobre a experiência da guerra. O horror nos emudece. A experiência vazia não gera relatos A pobreza da experiência nos cala. O horror corrói a experiência estética, o horror nos rouba a humanidade, confronta-nos com o precipício de onde seria melhor saltar, como se pergunta Severino, no poema cabralino: Se não seria melhor, uma noite, saltar fora da ponte e da vida, desta vida severina? Esta que se vê. Severino não pulou para fora da vida. Claudia nunca pulou. Arremessaram-na para fora da vida.

Tá lá o corpo estendido no chão.

Cláudia não foi a primeira. Cláudia foi mais uma. Cláudia foi mais outra. Como varrer de nossos mantos este borrão da impunidade, como implora o poeta abolicionista? Como zelar pela vida, varrendo o borrão que nos macula? Há de se protestar? Há de se erguer em barricadas? Há de se defender com armas? Olho por olho, dente por dente? Há de se usar a palavra?

Tá lá o corpo estendido no chão.

Há de se indignar? Há de se blasfemar? Há de se fazer coro com outros versos de Drummond: “Meu Deus, por que me abandonaste/ se sabias que eu não era Deus/ se sabias que eu era fraco.”

Tá lá o corpo estendido no chão.

(Analice Martins)

Notas para um outro texto

Li outro dia no jornal O Globo, acho, a sugestão de um arquiteto sobre a abertura do escritório de Niemeyer à visitação. Não li a entrevista até o final, mas, mesmo sem entender nada sobre esses protocolos, sobre a museificação de um espaço de criação como um escritório ou ateliê, concordei. Espero não estar falando uma impropriedade.

Os espaços da criação de escritores, pintores, escultores, fotógrafos parecem ao imaginário comum lugares imantados de uma aura especial onde a rotina ordinária de um artista, naquilo que de prosaico e férreo tem, entrelaça-se ao insight da criação, ao momento exato em que do forno artesão sai o pão que entrou massa e trigo e foram cozidos em fogo miraculoso.

Sei que a imagem pode parecer pretensiosa, mas o fato é que esses lugares criam um fetiche para os homens ordinários que supõem que se passe entre paredes uma alquimia a que só alguns têm acesso. Não quero espetacularizar a “cena da criação” além do que ela já é. Mas entender a arqueologia desses espaços parece-me uma tarefa não menos importante para os estudos das condições de produção de artistas.

Esse texto é apenas um esboço, um exercício de reflexão sobre tais contingências que situam concretamente (ou pretendem) a dimensão palpável da criação. Porque, sim, concordem ou não, há sempre algo que escapa ao entendimento na criação, mesmo quando, imagino, deparamo-nos no escritório de um arquiteto com desenhos primeiros, cálculos, pranchetas (ainda são usadas nos dias de hoje?), réguas, esquadros etc. Ou, quando nos deparamos com pincéis, tintas, cavaletes, borrões, e temos a sensação de que entenderemos o que parece fora de nossos alcance e competência, algo como “eu não saberia fazer”.

Visitar, portanto, um espaço como esse é uma forma de adentrar o mistério, de torná-lo terreno, de nos tornarmos também artistas (por que não?), já que, por mais que olhemos e olhemos, não encontraremos senão as pistas do percurso da criação, seus elementos indiciais: o lápis, o pincel, o cinzel. Às vezes, corremos afoitos quando localizamos alguma espécie de diário, pois supomos estar ali o passo a passo da obra, em narrativa ou esquemas. Ainda assim a expectativa será vã: a obra já se ergueu, ganhou corpo e existência próprios. Não foi isso que teria dito Michelangelo ao seu Moisés: “Parla”! Ou teria sido Da Vinci à sua Monalisa?

Talvez pensemos que olhar o momento da criação nos revele o seu segredo e, para tanto, não precisamos recorrer à contemporânea fórmula “work in progress” de galerias e museus famosos, a arte de rua ou nas ruas já nos oferece, há muito, a oportunidade da tentativa de compreensão. Ficamos em suspenso como o caçador prestes a aprisionar o pássaro na gaiola. Mas tal compreensão fugirá sempre, ainda que depositemos toda nossa atenção emotiva e intelectual na “cena do crime”. Na gaiola, o pássaro não tem o mistério do voo. E a obra é o voo, não o pássaro. Por isso, às vezes, pode ser decepcionante encontrar pessoalmente o artista amado.

Se escuros e escondidos, se claros e arejados, se nos porões ou nos sótãos, se nas montanhas ou diante do mar, se em arranha-céus ou em quintais, se suntuosos ou prosaicos, se físicos e fixos ou, hoje, móveis e portáteis, um espaço de criação é sempre alvo de nossos estremecimentos, como, se entrando neles, desvendássemos os segredos da criação.

Na França, estão lá, na condição de patrimônios, o de Cézanne em Aix em Provence, os de Matisse em Nice, o de Renoir em Essoyes, só para citar alguns poucos da minha conveniência. Se pudesse, assistiria à exposição “Picasso: No Atelier”, em cartaz até 11 de maio na Fundação MAPFRE, em Madri. A exposição abrange o trabalho do artista nos vários estúdios em que trabalhou e viveu e reúne cerca de 80 pinturas, 60 desenhos e gravuras, 20 fotografias e mais de uma dezena de paletas que permitem ao visitante verificar como o ateliê se tornou o centro em torno do qual girava toda a criação, o lugar em que se entrelaçava a sua arte e a sua vida. Além disso, há também um documentário, “O mistério Picasso” (1955), do cineasta francês Henri-Georges Cluzot, em que o artista é registrado em pleno gesto de criação, perante a tela no espaço de um ateliê cenográfico, no caso, um estúdio.

Sugiro, até que consiga organizar com mais esmero minhas impressões há muito acalentadas sobre tais espaços, a leitura do livro de Jean Genet, “O ateliê de Giacometti” (2000), da Cosac & Naify, com fotografias de Ernest Scheidegger. Nada mais lindo que ver um homem da palavra descrevendo sua estupefação diante do ato criativo deste impressionante escultor, responsável pelas figuras, em ferro, barro ou bronze, mais agônicas e críveis que jamais vi. Diz Genet: “A beleza tem apenas uma origem: a ferida, singular, diferente para cada um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando quer deixar o mundo para uma solidão temporária, porém profunda. Há, portanto, uma diferença imensa entre essa arte e o que chamamos o miserabilismo. A arte de Giacometti parece querer descobrir essa ferida secreta de todo ser e mesmo de todas as coisas, para que ela os ilumine”.

(Analice Martins)

Quem pode ser chamado de autor?

Talvez essa pergunta devesse ser precedida de uma outra: o que é um autor? Mas, como o filósofo Michel Foucault já a explorou de forma original, em 1969, em uma conferência posteriormente publicada, registro apenas, para entendimento da minha questão, que qualquer processo de autoria é equivalente ao valor simbólico de uma assinatura. Imprime significados distintivos reconhecidos por um grupo social ou mesmo para além de fronteiras culturais.

É, portanto, um processo de atribuição e reconhecimento. A obra atribuída a um autor e reconhecida pela comunidade de leitores como tal possui peculiaridades que, mesmo compartilhadas por uma escola ou uma tendência artística, são capazes de nelas serem diferenciadas por traços personalistas. Como uma figura que se destaca de um fundo amorfo. Uma assinatura é uma forma que ganha relevo sobre uma superfície plana onde se opera a marca de uma subjetividade.

A autoria é, portanto, um processo de criação em que o criador, entendido como artista, desconstrói, seleciona, organiza, mistura, sobrepõe, refaz, devolvendo à sociedade as matérias das quais se apropriou para a confecção de sua obra. A criação deve ser original, singular, mas isso não significa, necessariamente, o “nunca visto”. Como na lei de Lavoisier, “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Se me permitem o trocadilho, nas artes, tudo se cria porque se transforma. A originalidade que assegura a manutenção de uma assinatura é um processo de invenção realizado a partir da observação do mundo, das experiências, da memória e da fabulação. Ninguém cria do nada nem impunemente. Originalidade não é origem. Esta se esfumaça no tempo. Como na metáfora da cebola que se descasca sem jamais se encontrar uma semente. A origem é vazia. Ou se preferirem, “no princípio, era o verbo”.

Essa discussão é longa e polêmica, embora seja um divisor de águas urgente, chacoalhando o cânone, o moderno e o contemporâneo, subvertendo fontes e influências, desierarquizando o tempo cristalizado das nossas convenções. Se a convoco aqui é para um incômodo que me persegue, não sem razão: Por que um diretor de teatro ou de cinema ou um regente de orquestra, por exemplo, são reconhecidos como autores e gozam desse status merecidamente ou não, mas roteiristas e professores não ascendem a tal “glória”, exercendo as mesmíssimas funções?

Pois vejamos alguns exemplos: Diretores de cinema ou de teatro quase nunca são os autores dos textos dramatúrgicos ou literários que colocam de pé no palco depois. São intérpretes sem dúvida, mas trabalham com o trabalho alheio sem o qual talvez pouco fizessem. Precisam de um adaptador, de um roteirista, de um cenógrafo, de um diretor de fotografia, de um figurinista, de um sonoplasta, de um iluminador e, às vezes, até de um encenador ou preparador de atores. Como organizadores de toda esta operação, podem ganhar os céus, o inferno ou o limbo. São, no entanto, reconhecidos como autores. Quem há de dizer que “Hiroshima, mon amour” (1959) não é um filme de Alain Resnais, falecido há algumas semanas, ainda que Marguerite Duras, a autora do texto-roteiro, seja ela mesma uma autora cuja assinatura é reconhecidíssima? Concordo que sem Resnais não haveria o filme. Mas, sem o texto, haveria algum filme? Resnais desfruta de um epíteto caro e também polêmico na crítica cinematográfica. Fez cinema “de autor”, sendo que o autor era ele, o diretor. Woody Allen talvez possa ser visto em outra ponta. É autor do texto e da direção, assume uma dupla função. Até outras, creio. O mexicano Alejandro Gonzalez Iñárritu, por exemplo, diretor de “Amores Brutos”´(2000), “21 gramas” (2003), “Babel” (2006), não vivia sem seu Sancho Pança, o roteirista Guillermo Arriaga, dizem as boas línguas, o grande responsável pelo sucesso dos filmes em questão, até o divórcio profissional.

Sei que a questão é complexa, um vespeiro. Afinal, um filme ou uma peça de teatro são artes atreladas a outras (a literatura, a fotografia, a música). A literatura só depende de um único signo específico, a palavra, capaz de gerar outros tantos, como a imagem e o som. É uma arte polivalente e autônoma, no sentido de que não depende do concurso de outras. Então, nela, a autoria, quando compreende os quesitos já mencionados, é mais individual.

Para mim, que fique claro, diretores de cinema e de teatro, bem como regentes de orquestras, podem ser autores sim, uma vez que selecionam, recortam, montam textos muitas vezes já circulantes na sociedade. Portanto, criam e são originais. Só não entendo por que, professores, que desempenham as mesmas funções, ou seja, leem, escolhem, intertextualizam, organizam a apresentação, agregam outras artes e imprimem a marca de sua subjetividade na condução de um determinado conteúdo e no desenvolvimento de certas habilidades no aluno, não sejam chamados também autores, não gozem deste “de” atribuitivo, de pertencimento. Na minha formação, as aulas sobre Drummond, da professora Marlene de Castro Correia, foram e são o Drummond, de Marlene. As aulas sobre a obra de Graciliano Ramos, da professora Eliana Bueno, foram e são o Graciliano, de Eliana. As aulas sobre Cecília Meireles, de minha querida mãe, Ruth Maria Chaves Martins, foram e são a Cecília, de dona Ruth. A lista seria longa, pois, para mim, esses e outros tantos professores sempre deixaram em suas aulas a marca autoral de sua subjetividade. Não confundam isso com impressionismos, achismos, confidências, testemunhos. Estou falando de seu repertório de leituras, de sua seleção, de suas formas de associação, de seus posicionamentos crítico-analíticos, de seus recortes.

Ora, não são eles também autores? Não deveriam ser reconhecidos com a mesma distinção de diretores e regentes? Mas nem se esforcem para responder. Em um país como o nosso em que a educação é assunto menor, professores só serão autores em nossas memórias afetivas.

(Analice Martins)

Entre culturas

O papa negro dos Estudos Culturais, Stuart Hall, morreu na semana passada em Londres onde vivia desde a década de 50 do século XX. Valho-me desta designação apropriadíssima que intitulou a entrevista que concedeu, em 2003, a Heloisa Buarque de Holanda e a Liv Sovic, professoras e pesquisadoras da UFRJ.

Para minha felicidade, estive em Salvador, em 2000, quando ele fez a conferência de abertura do mais importante evento de estudos de literatura no Brasil: o VIII Congresso da ABRALIC, Associação Brasileira de Literatura Comparada. Também lá estiveram outros pesquisadores da diáspora negra, do entrelugar do discurso, das vidas em trânsito, das identidades cindidas, dos estudos multiculturalistas, como, por exemplo, Gayatri Spivak, autora do provocante ensaio “Pode o subalterno falar?”. Naquela ocasião, eu começava meu Doutorado em Estudos de Literatura, na PUC-RIO, e acabava de ser lançado no Brasil seu pequeno e badalado livro “A identidade cultural na pós-modernidade”. Um livro de caráter didático, mas que se tornou febre nos cursos de Graduação e Pós-Graduação nas universidades do país, uma leitura quase obrigatória. Lembro-me de que, por uns dez anos consecutivos, praticamente todas as dissertações e teses que li, nas grandes áreas das Ciências humanas e sociais, Letras e Artes, pagavam tributo a ele. Não sem razão, embora de forma às vezes um pouco forçosa e em detrimento de outros vigorosos estudos de fôlego sobre a questão da identidade cultural e sua vertente diaspórica, da qual Hall, jamaicano radicado em Londres, fosse talvez o mais prestigiado representante.

As travessias compulsórias, por mais que possam prometer a libertação de determinados grilhões, não se fazem impunemente. Essa cicatriz é a lembrança sempre viva de que os novos pertencimentos, ou seja, as inserções na cultura dominante, dão-se por agenciamentos difíceis. Na entrevista a que me referi, Hall afirma que sua migração para a metrópole antecedeu as lutas pela independência jamaicana, mas que, apesar de ter-se casado com uma inglesa e ter filhos nascidos na Grã-Bretanha, nunca se sentiu como um inglês integralmente. Esta consciência do entrelugar de seu discurso, como professor e pesquisador, bem se traduz no depoimento a seguir: “Quanto à Jamaica, é meu país perdido, onde já não me sinto em casa. A Jamaica é o que eu poderia ter sido, é o que poderia ter acontecido. Portanto tenho uma relação muito romântica, muito nostálgica com a Jamaica. Meus amigos que ficaram tiveram experiências fortes como a da independência e das lutas dos anos 70, da transformação da Jamaica numa sociedade negra. Se a Jamaica já fosse uma sociedade negra quando parti, eu nunca teria ficado na Inglaterra. Teria voltado para casa. Sinto que não estou em casa em nenhum dos dois países, o que é, suponho, a causa da minha ênfase na noção de ‘in-betweenness’. É por isso que me interesso pelo fenômeno das diásporas, é por isso que me interesso por hibridizações, pelo que constitui a “casa” , para a qual nunca se volta efetivamente”.

Hall formou-se em Letras em Oxford e não custou a repensar o cânone da literatura ocidental, em especial a inglesa, como um mecanismo também excludente, afeito a um certo elitismo literário. Ora, para um homem ciente de seus duplos pertencimentos e engajado socialmente, o cânone literário precisava ser revisto para incluir as vozes das margens, das ex-colônias, das periferias urbanas etc. Percebeu logo que a ausência do estudo da contemporaneidade era uma postura segregacionista, que a academia quando muito chegava ao estudo da literatura do século XIX. Percebeu além: que, sem a associação das formas literárias aos contextos histórico-culturais de suas produções, toda pesquisa estaria fadada ao beletrismo e teria um caráter inócuo. A aproximação da crítica social e de Richard Hoggart de quem foi assistente permitiu demarcar a indissociabilidade entre literatura e cultura ou, de forma mais abrangente, entre artes (música, pintura, fotografia) e cultura, isto é, tudo aquilo sobre o que se debruçam os Estudos Culturais, esgarçando as fronteiras entre alta cultura e cultura de massa, arte e mídia, e reafirmando a importância de pensar de “onde se fala”? De que contexto? Que implicações isso traz para as marcas discursivas que entram em circulação em registros mais universalizantes?

Para a cultura brasileira, transplantada, miscigenada, híbrida e múltipla em seu nascedouro, tais questões urgem. Não à toa observa-se a penetração de seus estudos nas universidades do país. Não foi apenas como pensador da diáspora negra que Stuart Hall fincou seu legado entre nós, mas, sobretudo, pela percepção da identidade como algo que não é nem essencialista nem fixo, mas sim uma “celebração móvel”, um processo de identificações na convergência das variantes de etnia, gênero, escolaridade, faixa etária etc. Reconheceu que por trás de uma aparente homogeneização identitária reinam importantes variantes discursivas, como nele próprio, um intelectual negro, de origem jamaicana, cidadão inglês. Toda formação discursiva de relevo parte de fissuras e atritos ou alguém desconsidera, para citar um caso nosso, que Clarice Lispector, além de mulher, era judia, ucraniana, residiu em Recife, mudou-se para o Rio e correu o mundo?

(Analice Martins)

Quando a realidade engole a câmera

O documentário é um gênero audiovisual que pretende captar a realidade em seu estado bruto, sem a mediação de atores, cenário ou vestimentas. Esta estratégia finge abolir o enquadramento da câmera, as intenções do diretor, colando-se no entorno para decalcá-lo e nos devolvê-lo em imagens e sons desprovidos de maiores interferências. O documentário é também um gênero que visa à exploração investigativa da realidade, seja ela social, política ou mesmo pessoal e subjetiva.

Este princípio estruturante é, no entanto, falacioso, como bem sabemos, pois o enquadramento da lente, os ângulos escolhidos, a tomada de sequências e closes funcionam como molduras que recortam a realidade palpável e a reconfiguram na necessária edição, que é condição operatória de qualquer arte, mesmo aquelas com propósitos documentais. Ainda que o diretor filme sem interrupções e sem intervenções, o que foi filmado deixa sua condição objetal para se transformar em imagem. Não se trata mais, portanto, da realidade, mas de sua representação, como na caverna de Platão.

Tal processo, então, fabrica o real, valendo-se do mesmo princípio estruturante dos filmes de ficção que, por vezes, parecem mais reais do que documentários com a mesma temática. Cito, por exemplo, o documentário “Tiros em Columbine” (2003), de Michael Moore, em que o diretor, a partir de entrevistas, imagens de arquivo, vídeos institucionais, sequências de animação, procura entender a fascinação dos americanos por armas de fogo, sua venda legalizada e as consequências nefastas desta postura armamentista para a sociedade americana. O documentário, qualquer que ele seja, apoia-se em testemunhos, mesmo que não haja falas.

O testemunho se ergue como a prova incontestável do fato. Um argumento de autoridade que dá credibilidade à argumentação que se constrói sobre determinado assunto. Imagens de arquivo e fotos também funcionam nesse sentido como elementos que capturaram o evento em tempo real e que, portanto, podem conferir autenticidade ao ocorrido.

Ser ficcional, ou seja, ter um caráter representativo e não apresentativo, não retira necessariamente da narrativa audiovisual sua plausibilidade, aquilo que Aristóteles, em sua “Poética”, nomeou como verossimilhança, ou seja, “as virtualidades criadoras”. Este estatuto das composições artísticas é tão eficiente, parece-me, quanto a pretensão de retratar a “verdade nua e crua”, pois ela pode ser indecifrável a olho nu sem as mediações de um enredo paralelo à história em si. A ficção não deve subordinar-se à realidade, pois não lhe serve obrigatoriamente de testemunho, mas bem pode elucidá-la, jogar-lhe luz e produzir o tão perseguido “efeito de real” que nossa sociedade contemporânea exige como condição de sobrevivência: a coisa real, o espaço real, o tempo real. Ora bolas, o real pode ser indizível e inapreensível.

“Elefante” (2003), de Gus Van Sant, é uma pequena joia rara. Um filme de ficção enxuto sobre a mesma temática de “Tiros em Columbine” que, sem as amarras sociológicas de um documentário, consegue colocar, com mais veemência que Moore, algumas questões possíveis para o entendimento do comportamento cada vez mais frequente dessas tragédias americanas: a facilidade de acesso às armas, os jogos eletrônicos simuladores dos tiros e da morte como mero entretenimento, o vazio das rotinas de alguns adolescentes, uma família ausente, tribos e “bullying”. A atmosfera de indagação sobre a tragédia consumada nas mortes da escola de Columbine ganhou no filme de Van Stan , creio, mais poder de nos afetar e fazer pensar do que na estrutura fílmica do documentário.

“Jogo de cena” (2007), de Eduardo Coutinho, traz à tona este embaralhamento entre realidade e ficção. Em um cenário minimalista, mulheres anônimas e conhecidas, atendendo a um anúncio de jornal, falam de suas vidas sem que consigamos discernir ao certo se as conhecidas como atrizes representam um papel ficcional ou se se apresentam autenticamente, se falam de si ou se falam como personagens. Em contrapartida, as anônimas não necessariamente são não-atrizes, mas o fato de não conhecê-las nos borra a visão e os ouvidos. Não sabemos se são elas próprias ou os seus papéis. Que importa? Tudo que é relatado é absolutamente crível, seja um relato inventado, fabricado pelo diretor/roteirista, seja um relato memorialista. Sem deixar de parecer verdadeiro, nada escapa da edição do ato de recordar e, depois, da câmera e da montagem.

Mas, às vezes, a realidade é intraduzível, seja no testemunho das imagens, seja no relato ficcional. Às vezes, a realidade avassaladora engole a câmera que procurava enquadrá-la, documentá-la para explicá-la. A realidade engoliu o documentarista Eduardo Coutinho, engoliu também o cinegrafista Santiago Andrade.

(Analice Martins)

 

Para o dia nascer feliz

A experiência de esquecer o celular em casa pode ser uma grande reflexão sobre o tempo. Afinal, carregamos, com esses smartphones ligados à internet, o mundo na palma da mão. Carregamos também todas as suas urgências, instabilidades, suscetibilidades e novidades. Talvez já nem saibamos mais como estar fora de tal sincronismo. Distância virou uma palavra a ser abolida dos nossos vocabulários, algo meio abjeto e anacrônico. É claro que esta constatação tem uma paga. Os tributos são altos.

Penso dessa forma, ainda que reconheça que um celular na bolsa pode obrar milagres, retirar-nos de situações quase irremediáveis, salvar vidas, encontrar vidas sob escombros, enfim, evitar ou contornar tragédias e, assim, interromper o que, antes, seria irreversível. Eu mesma, certa vez, fiquei presa em um elevador com minha mãe, minha irmã, minha sobrinha, à época, com uns dois anos e um tio. Quando o desespero começava a nos apertar, lembrei-me do celular na bolsa. Já lá se vão uns treze anos. Do outro lado da linha, outro tio, não menos nervoso, ligava para o corpo de bombeiros. No final, o alívio se misturava às risadas.

Ainda assim, peguei-me extasiada outro dia pela manhã em que esquecera dois aparelhos em casa e, passado o primeiro ímpeto de retornar, relaxei e gozei. Duas maravilhosas horas de desligamento em que o esquecimento do “aparelhinho da alegria” me conduziu à sensação de suspensão do tempo. Sim, eu prendera o gênio na garrafinha e me mantive longe de suas garras cruéis, absorta de suas imposições e embalada pelos versos de Chico Buarque: “Não se afobe, não. Que nada é pra já”.

Canto baixinho esses versos como uma espécie de mantra ou de rosário, crendo que sua repetição me salvará do “já”, o diapasão da vida contemporânea. Isso aqui não é papo de preguiçoso não, muito embora esteja escrevendo essas “mal traçadas linhas” em uma manhã de segunda com uma brisa fresca que vem do pontal de Atafona. É uma cachacinha que tomo às segundas de manhã, seja lá onde estiver, para aguentar o tranco depois até às 22h40min, quando saio de sala de aula, quase sempre feliz.

O fato é que essa portabilidade do mundo que smartphones promovem, considerada seu maior atributo, é também um despotismo para nossas rotinas. Podemos não atender às chamadas, não acessar a internet ou as redes sociais, mas ele fica lá como uma acusação de nossa alienação ou sumiço, como se fosse uma obrigação estar online.

O telegrama, o rádio, a televisão e o próprio telefone em suas versões fixas já representaram esse assédio informacional. Eu me sinto assim às vezes: estuprada pelo mundo. É contraditório, pois não sei viver sem um jornal. Em Campos, em que não encontramos a Folha de São Paulo, o Estadão, o Correio Braziliense ordinariamente nas bancas e, se não acorrermos a elas até às 11h mais ou menos, podemos vir a não ler nada, fico nervosa, ainda que possa ligar qualquer aparelho em casa e deixar que o mundo venha para minha cama ou para minha mesa de café da manhã.

Os celulares, no entanto, parecem-me a tradução mais exata da formulação de David Harvey sobre a pós-modernidade: a tal compressão espaço-tempo. Para mim, este é o verdadeiro mal-estar da civilização contemporânea. E, para fugirmos dele, precisamos nos esconder dos aparelhinhos. Estar sem eles, é, atualmente, uma experiência sensória radical, quase uma amputação de membros. É, no entanto, com tal ausência, que reaprendemos a olhar as pessoas, a ouvi-las, a encontrar soluções criativas, a dar ao corpo e à mente um compasso menos frenético.

Diz o ditado popular que a pressa é inimiga da perfeição. Mas quem se importa? A instantaneidade, a simultaneidade, a sobreposição de tempos, ou seja, esta espada do “já” virou nossa companheira inseparável. Ai de nós, caso não tenhamos prontidão, discernimento rápido, não saibamos fazer leitura dinâmica e digitar na velocidade da luz, arderemos no fogo do inferno.

Nesse contexto, smartphones são companheiros do imperativo da velocidade, esquecê-los quase nos gera culpa, temos que nos desculpar por isso, não podemos estar off line, nem usar a desculpa de que estávamos sem o sinal da operadora. O dia que relatei no início desta crônica, em que esqueci os celulares em casa (ato falho, dirão os psicanalistas de plantão), dei ao meu corpo e ao meu espírito uma viagem libertária, saltei para fora do tempo do “já” e cantei com Chico: “Não se afobe não…”.

(Analice Martins)

Shoppings e pertencimentos

Shoppings são, em princípio, lugares destinados ao consumo. Lugares de passagem provisória e pragmática, para onde se dirigem os movidos pelo desejo ou pela necessidade de compra. São lugares que, restritos a essa função, não seriam lugares identitários, ou seja, aqueles com os quais estabelecemos vínculos e com os quais, por alguma condição existencial, psicológica ou sociológica, criamos pertencimentos.

A partir do momento em que os templos do consumo massivo passam, cada vez mais, a agregar outras funções, tais como a alimentação (praças ou restaurantes); o entretenimento (teatros, cinemas, jogos); a atividade física (academias) e a estética (cabeleireiros, massagens, drenagens), deixam de ser lugares de passagem, sem vínculos fixos, para se territorializarem, ou seja, para os povoarmos como se fossem também as nossas casas, os nossos espaços de eleição. Nesse caso, conferimos a eles um sentido não apenas utilitário, movido pelos contratos de compras e serviços, mas de cultura e diversão, atributos também necessários ao espaço público que, em essência, é para todos, como por exemplo, a rua, a praça, a praia.

O antropólogo francês Marc Augé traz importantes contribuições a tal reflexão em seu livro Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Para ele, o conceito de “não-lugar” não está atrelado à não existência, ao que não existe, mas aos espaços com os quais não se estabelecem vínculos identitários ou de pertencimento, pois são apenas espaços de trânsito, de passagem, sem laços. Rodoviárias, aeroportos, hotéis, shoppings seriam exemplos de “não-lugares” em oposição aos “lugares antropológicos” como a casa e seus duplos (o bairro, a cidade).

Nada disso, no entanto, pode ser entendido sem uma perspectiva relativista que introduz questões que subvertem essas categorias. Por exemplo, em um mundo globalizado e veloz, de trânsitos nervosos e urgentes, a “casa”, como representação das raízes e das pertenças primeiras, acaba por ser apagada em proveito de outras estadas em que o anonimato e a despersonalização das relações são novas e desejáveis fórmulas de vínculo.

Para entender as dinâmicas sociais, é conveniente que, além dos nossos sentimentos de rejeição, estranhamento, preconceito ou mesmo repulsa, olhemos para além de nossos umbigos. A esfera pública pressupõe um convívio democratizado, aberto às diferenças e às múltiplas vozes. A esfera privada, voltada para o público – o que me parecem ser os shoppings -, não pode se furtar a tal exercício, sob pena de oficializarmos uma política segregacionista e enterrarmos de vez nosso já questionável mito fundacional da cordialidade.

Portanto, em época de rolezinhos – que não são arrastões –, devemos erguer nossos estados de consciência e não necessariamente muros policialescos. Quebra-quebra, furtos, depredação, algazarra, nada disso se justifica, sem dúvida. Mas é hora de entendermos que a democracia é um processo de territorialização, otimizado, agora, pelo poder das redes sociais.

O que nos soa invasivo e estranho, nada mais é do que o resultado das nossas territorializações. Ao entendermos o shopping como casa, ao desejarmos viver resguardados por suas paredes e tetos de vidro, não queremos aceitar que ele pode ser o trânsito de todos ou de qualquer um. Ao introduzirmos nele nossas sagradas horas de descanso, lazer e ócio, territorializando-o como a nossa casa, esquecemos que ele é para o público que não precisa de carteirinha para aí entrar. Para alguns, quem sabe, esta seja uma boa solução: fazer dos shoppings clubes de diversão e privacidade.

Vale lembrar, por último, que, talvez, o problema não esteja nos shoppings, na privacidade, na segurança ou na mobilidade das periferias, mas no que efetivamente entendemos por território.

(Analice Martins)

O amor está no ar (II)

Todos pretendemos conceber o amor como uma invariável universal cujas manifestações recorrentes atravessam séculos e espaços. Que seja! Mas isso não o deixa isento de subordinações culturais em que interditos e concessões são variáveis. “Além da fronteira” (2012), de Michael Mayer, é um “Romeu e Julieta” étnico e homoafetivo. Como no clássico shakespereano, a paixão é proibida. Neste caso, sobretudo por conflitos políticos e religiosos. O amor entre um palestino e um israelense, se literalmente atravessa fronteiras e cercas de arame farpado, não o faz impunemente.

O filme de Mayer tem pretensões politicamente corretas. Talvez isso o torne enquadrado e pouco impactante. “Além da fronteira” fica aquém como narrativa fílmica, ao tentar expor de forma didática todas as tensões envolvidas em uma relação em que o território é a identidade cultural maior que se carrega sem que se possa ocultá-la. Nimr (Nicholas Jacob) é um estudante de psicologia palestino, dividido entre o amor à família arraigada a valores religiosos e culturais e a sexualidade só vivenciada clandestinamente. A primeira cena do filme é real e simbólica ao mesmo tempo. A travessia escondida de uma cerca divisória dos territórios palestino e israelense, para ir a uma boate gay em Tel Aviv, demonstra a dura realidade política que também se ergue entre Nimr e Roy (Michael Aloni), o advogado israelense por quem Nimr se apaixona à primeira vista.

Se a relação amorosa entre os dois flui naturalmente e sem engasgos, com sexo afinado e trocas intelectuais, o entorno é bem mais assimétrico. Roy é abastado, mora sozinho e tem pais cultos e cúmplices. Ambiente familiar totalmente diverso do de Nimr. Aliás, a revelação de sua condição homossexual é bastante doída. A rejeição da mãe, até então amável e doce, é implacável. A obediência cega a valores religiosos e culturais não confere nenhum abrigo ao filho. Sua expulsão de casa é mais um elemento que reforça tabus e interditos.

Nem o passe livre para entrar em Israel, com a vaga conseguida na universidade de Tel Aviv, consegue reverter a situação. Se, por um tempo, o amor encontra um espaço mais acolhedor na casa de Roy e mesmo numa cidade mais cosmopolita, não tardam as sombras políticas que fazem com que Nimr seja investigado e vigiado como possível ameaça terrorista. Só o que resta neste cenário de opressão é a fuga, a tentativa desesperada de entrar na França e aguardar a chegada de Roy, que, enfim, depois de todos os esforços jurídicos para conseguir o amparo legal para a situação de ambos, concorda em deixar tudo para trás. Mas, como no clássico de Shakespeare, a felicidade é interdita. É, antes, apenas uma quimera.

“Tatuagem”, de Hilton Lacerda, melhor filme do Festival de Gramado em 2013, é, como disse o crítico de cinema Carlos Alberto Mattos, “talvez, o filme brasileiro mais hedonista e transgressor dos últimos tempos”. O crítico atribui este fato ao recuo cronológico. A opressão da ditadura militar em 1978 não conseguiu impedir a efervescência cultural e comportamental daquele momento. Sendo profundamente lírico e intimista, “Tatuagem” é também político ao extremo, mas não de forma esquemática como “Além da fronteira”. A ousadia e a consciência transgressora se refletem na vida comunitária do grupo teatral pernambucano “Chão de estrelas” que apresenta, em um cabaré da periferia, toda a efervescência da resistência à opressão, com números burlescos, provocantes, sensuais com direito ao escracho e ao deboche inteligentes.

Outras são as formas de viver e de se relacionar. Estão lá a maconha, o álcool, a literatura, o teatro, as discussões mais corriqueiras e as intelectualizadas, o amor, a solidão, o sexo, a dor e a alegria. Clécio (o formidável Irandhir Santos) é o líder deste grupo, seu guru intelectual, o mestre-sala das apresentações, homossexual assumido, pai zeloso de um adolescente, com cuja mãe convive em harmonia. Até a chegada de Fininha (o não menos competente Jesuíta Barbosa), Clécio se relacionava com Paulete (Rodrigo Garcia), o travesti que é uma das estrelas do grupo. Arlindo, o Fininha, vem de um ambiente totalmente oposto à postura hedonista do grupo. Vive no quartel, serve ao exército e é incomodado por insinuações sobre sua possível homossexualidade. Filho de uma família pobre e castradora, namora a irmã de Paulete, que só vem a conhecer quando vai entregar-lhe uma carta da irmã. Lá se deslumbra com a atmosfera libertária do grupo e se encanta por Clécio. Encanto mútuo.

São lindas as cenas em que Clécio canta “Esse cara”, de Caetano Veloso, e o faz olhando nos olhos de Fininha. Talvez se fosse outro ator que não Irandhir Santos e outro diretor, a cena poderia até parecer piegas, mas é catalisadora e sedutora. Como a outra em que dançam juntos no primeiro contato de seus corpos ao som na vitrola, de “A noite do meu bem”, de Dolores Duran.

Também aqui não há final feliz para a história de amor entre Clécio e Fininha, embora o amor permaneça no ar, na atmosfera, nas cartas enviadas depois por Fininha. Concordo com Carlos Alberto Mattos mais uma vez: “ ‘Tatuagem’ tem o sabor das coisas vividas e sentidas até o osso”.

(Analice Martins)