O famoso quadro de René Magritte que traz a inscrição (“Isso não é um cachimbo”) não é a traição da imagem, mas a sua libertação. As imagens, como as palavras, não são as coisas. A arte, com seu dom de iludir, nos faz pensar, entretanto, que aquilo que está pintado ou escrito é a realidade em si. Por isso, o artista nos adverte para que não nos deixemos enganar.
Uma tela como esta, que remete ao jogo ilusório das imagens, coloca em questão o estatuto da representação e força o espectador a responder alguma coisa, ainda que para si mesmo. Afinal, é para isso que também serve a arte, para que reflitamos e sejamos capazes de formular respostas e questões ao que se coloca diante de nossos sentidos.
O Modernismo, mais do que qualquer outro período, trouxe o desconforto das ilusões rompidas, ao distanciar a linguagem da realidade, ou melhor, ao evidenciar que a realidade artística é fruto de um processo consciente de fabricação e não de uma espécie de aderência ou cópia. Neste sentido, foi o século XX, por estranho que pareça, o que mais intensificou a interação entre a obra e o público, já que obrigou este último a se deslocar de seu silêncio reflexivo em direção à obra.
Para que se insira num sistema comunicativo, a obra de arte deve promover a interação, ou seja, uma ação que se estabeleça entre duas ou mais coisas e que seja, portanto, recíproca. Tal rel(ação) não é necessariamente entre o artista e o público, mas entre a obra e o público.
Com os avanços da tecnologia, a ideia de interação vem sendo substituída por algo mais específico: a interatividade. Esta seria a relação tecno-social que criaria um diálogo entre o homem e a máquina, por meio de interfaces gráficas, em tempo real. Parece-me que a interatividade é apresentada como grande qualidade dos dias atuais. Mais do que isso: uma exigência ou forma de sobrevivência. Se não for interativo, não vale!
Foi mais ou menos essa a cena que presenciei durante o feriado da Páscoa. Enfim, fui ao MAR e pude mergulhar em suas profundezas. A concepção do Museu de Arte do Rio é exatamente esta: a de um mergulho. Sobe-se para depois descer e, de lá, do térreo, emergir com novos olhares sobre a cidade.
A visita se inicia pelo sexto andar, de onde se avista, em tempo real, a Baía de Guanabara. Quando entramos no museu propriamente, o hall traz um filme em preto e branco com cenas do zeppelin, do trem e da barca que chegavam ao Rio, trazendo muitos visitantes. Ao lado, uma sala com pinturas e desenhos do século XIX, representando, sobretudo, a geografia da cidade maravilhosa.
Foi nesta primeira sala, na qual entrei cerimoniosamente, que logo me desconcentrei com a exclamação (“Não tem nada interativo aqui!”) de um menino acompanhado da família e de uma dedicada mãe que, em voz igualmente alta, explicava cada tela ao seu rebento. Eu pensei, em silêncio, comigo mesma: maldita interatividade!
Interatividade é hoje uma palavra de ordem, uma profissão de fé, algo muito aborrecido que nos faz estar em estado de alerta 24h. Além de termos que permanecer online, temos que responder a tudo e a todos nem que seja com um entusiasmado “curtiu”, o sinal mais interativo do facebook. Curtir, compartilhar, comentar. Enfim, uma “verboimagia” infinita e chata.
Para que haja de fato interatividade, é necessário que os atores envolvidos sejam, a um só tempo, produtores e receptores de informação. A obra que observamos é produtora de significações quando somos capazes de reagir a ela, respondendo-lhe mesmo que em silêncio, com nossa imaginação, nossos sentimentos. O que nem todos conseguem perceber é que a simples reação a uma obra já é uma resposta atualizadora, segundo o filósofo Pierre Lévy. Responder é também produzir significações. Se assim é, a interatividade não é nenhuma novidade do século XXI. Pode até ser uma ditadura, mas novidade não é.
O que me parece muito desarrazoado é suprimir, da interatividade, a contemplação. Se algo não é observado atentamente, considerado com admiração, meditado e refletido, não suscita respostas. Logo, não se estabelece a interatividade.
Por isso, quando cheguei à última das salas do MAR, a que fica no térreo, lá estava refestelado, numa espécie de rede, o “enfant terrible” do sexto andar. Pois foi lá, em meio a luzes, cores, sons, objetos apalpáveis, ligáveis e desligáveis que renovei minha concentração contemplativa. Afinal, de que interessam respostas ao alcance de um clique e tão distantes de um “insight”?
(Analice Martins)