A foto publicada na capa do jornal “O Globo” no sábado passado, dia 3, quis dispensar explicações no texto que a acompanhou. A manchete dizia “Serra Pelada no Arpoador”. Os primeiros dias de 2015, no Rio de Janeiro, têm sido insuportavelmente quentes. Nada mais justo e democrático que as praias cariocas sejam invadidas por banhistas sedentos do prazer de se refrescarem à beira-mar, acompanhados ainda da quase inigualável beleza do pôr-do-sol, entrevisto da praia do Arpoador na Zona Sul. Um espetáculo sinestésico, convenhamos!
Aparentemente, nenhuma novidade nesse cenário que não sejam as transformações por que vem passando a sociedade brasileira nos últimos dez anos: fortalecimento da moeda nacional, oferta ampliada de educação, acesso das classes menos favorecidas a bens de consumo e sua consequente mobilidade territorial e simbólica.
Ainda que relativizemos cada um dos fatores mencionados ou que questionemos – com razão – um enganoso “empoderamento” das classes C e D, não podemos ignorar que a segregação em espaços marginalizados se desfez e que isso deve ser saudado. No Rio de Janeiro, as estações de metrô de Ipanema e Copacabana não só permitiram que os residentes nessas áreas pudessem se valer do transporte público para o trabalho no centro da cidade, por exemplo, como permitiu a reterritorialização de espaços públicos tratados como exclusivos de uma minoria. Refiro-me às praias da Zona Sul carioca em especial, mas também às ruas, às praças, à Lagoa Rodrigo de Freitas etc.
A chegada do metrô a Ipanema em 2009 intensificou essa sensação bairrista de posse das praias e impôs uma dinâmica de circulação e de entendimento dos usos possíveis dos espaços públicos que sugerem mais o confronto do que a inserção desejada. A evocação saudosista deste território de outrora parece-me ter sido a intenção explícita, embora não verbalizada por escrito, da foto a que me refiro, além da visão preconceituosa que me pareceu carregar.
No jornalismo informativo, tudo deve ser explicado, rezam os manuais de redação. A ausência de qualquer referência ao espaço geográfico de Serra Pelada, no Norte do país, da corrida desenfreada atrás do ouro prometido no garimpo selvagem e assassino é fato sem dúvida conhecido, documentado e até vertido para o cinema, mas é datado. Portanto, deveria ser contextualizado para que indistintamente fosse compreendido por leitores de qualquer faixa etária e condição sociocultural. Quando o jornal suprime a contextualização, cria a expectativa do pressuposto, que gera o compartilhamento de ideias, ou a inferência, que se abre para análises variadas.
A foto em cores pareceu monocromática. É marrom. Um esmaecimento do tom terracota. É meio ferrugem. Dependendo do horário, da luz natural e do ângulo em que foi tirada, talvez seja “autêntica”, mas, em tempos digitais e de photoshop, não me arrisco a nenhuma afirmação contundente.
A aproximação cromática ao garimpo de Serra Pelada é atributo insatisfatório para dispensar as analogias necessárias ao desenvolvimento da matéria, por mais que seja a única justificativa que, imagino, o jornal daria, se interpelado. Com isso, as intenções implícitas do jornal passam para o primeiro plano do interesse analítico. O que o jornal “O Globo” não disse explicitamente? Por que tentou camuflar o preconceito com a imagem muda?
Serra Pelada foi terra de todos. Logo, de ninguém. De migrantes de todas as partes do Brasil, de forasteiros, de estrangeiros. Serra Pelada pode ter sido vista como uma espécie de Eldorado, mas foi sobretudo o dantesco, o inferno dos desmandos e da barbárie.
Ao optar por não contextualizar a informação “Serra Pelada”, por não explicar as razões da comparação com a atual territorialização da Pedra do Arpoador, ao fazer parecer que o calor seria quase a única razão da analogia, o jornal (a mídia, em geral) revelou todas as suas intenções e também os seus preconceitos em relação à “natureza roubada”, ao bairro invadido, ao paraíso decaído, coisas desse gênero.
O marrom de Serra Pelada usado para representar o cenário atual do Arpoador e de suas cores sempre vibrantes deveria ter sido explicado com coragem e limpidez, sem subterfúgios metafóricos e sem subentendidos preconceituosos. Afinal, a foto, no jornal, não serve para explicar o fato?
(Analice Martins)