Em entrevista ao jornal O Globo recentemente, o diretor e roteirista Jorge Furtado declarou que o cinema perdeu muito de sua importância como forma de pensar a realidade social. O aclamado diretor de “Ilha das Flores”, “Meu tio matou um cara”, “Saneamento básico”, “Mercado de notícias” e também de programas para TV, como “Doce de mãe”, não hesitou em sublinhar a perda da relevância do cinema contemporaneamente.
Embora essa declaração tenha me incomodado bastante, Furtado me fez desdobrá-la em dois sentidos: como linguagem de reflexão e como evento da imagem. No primeiro caso, o cinema, como linguagem nascida na cultura de massa, não tem conseguido se descolar da lógica mercadológica que lhe imputa temas, pasteurizações, banalidades, estética clipada, imagem hiper-realista, fazendo com que muitos filmes valham por um só, impondo aos espectadores (ou seria melhor dizer público consumidor?) um reme-reme entediante, descartável, replicável e estéril. Filmes que rendem milhões de bilheteria, mas que, ao final, só guardam o sabor enjoativo da pipoca.
Isso não é papo de esteta da linguagem afeito apenas a experimentalismos. É quase um truísmo, um senso comum. Não fica nem um fiapo de história que valha um chope, que dirá uma insônia, uma aceleração taquicárdica, um incômodo. Não é com saudosismo apenas que Furtado identifica esse vazio criativo, é com desencanto mesmo, como algo que perdeu sua significação anterior e não ganhou outra que possa sinalizar, com raríssimas exceções, uma progressão qualquer.
Por que entretenimento, penso eu, tem que estar apartado de reflexão? Entreter-se é empenhar o tempo em algo, é investir o tempo em alguma coisa que nos chame a atenção. A indústria do entretenimento, porém, passa bem longe desses significados etimológicos. Para ela, cinema é a maior diversão. E só isso. A alegação de que a realidade já é pesada demais para que destinemos nossas horas de descanso a alguma reflexão é enganosa e pervertida. Pois é justamente quando podemos nos entreter que aumentamos nossa capacidade de entendimento, de fruição e alargamos nossas fronteiras perceptivas. Quando saíssemos do automatismo de nossas rotinas, deveríamos procurar algo que nos afetasse e que nos engrandecesse a fim de que voltássemos renovados às nossas máquinas diárias dos tempos pós-modernos.
Jorge Furtado evoca Truffaut, Godard, Scorsese, Resnais como cineastas que procuravam pensar o mundo e cujos filmes eram aguardados como se fossem nos explicar a vida e suas dinâmicas. O cinema de autor morreu? O que lhe sucedeu? Linguagens autômatas, reprodutíveis, homogeneizadoras e insípidas?
É como “evento da imagem”, no entanto, que a perda da relevância do cinema me parece mais doída e perigosa. A proliferação e a capacidade de armazenamento de imagens nos dias atuais nos tornam falsamente seguros. Cremos que o evento em si – o aqui e agora da projeção, a entrada na sala escura do cinema – não imponha nenhum rito. Entramos sem reverência e com a certeza da reprodutibilidade de toda e qualquer imagem. Nada que nos detenha demais a atenção, porque tudo entraria, de antemão, na esfera do “já guardado”. Mídias que guardam e reproduzem aquilo que antes se dava como evento quase irreprodutível e inacessível. Vimos ou não vimos. Isso com certeza fazia do cinema uma verdadeiro entretenimento. Um máximo de concentração e entrega para que nossas memórias pudessem guardar aquelas imagens que diziam o mundo naquele único episódio da sessão. O máximo que se conseguia era ir a várias sessões, mas os filmes não ficavam ao alcance de nossos olhos e sentidos. Ou eram introjetados em nossos sentidos e cognição ou se perdiam para sempre e, com eles, a leitura do mundo que o diretor nos ofertava de maneira singular.
Longe de mim fazer um discurso escatológico e detrator da democracia de acesso às imagens a partir de qualquer controle remoto, dispositivo de armazenamento de mídia ou ainda do “tudo se acha da internet”. Não seria leviana a esse ponto. Mas lamento muito essa anulação da condição de “evento único” que um filme outrora nos trazia. Nossa percepção cognitiva e sensorial tinha que se apurar para que não desperdiçássemos aquela ocasião.
Assim como podemos nos emocionar encontrando na internet ou em um canal de tv a cabo aquele filme que nos estremecera e que fora nosso maior entretenimento, podemos também desfazer o sabor do momento inaugural e aurático. Tenho filmes em DVD que comprei quando ainda se comprovam DVDs, a que assisti uma única vez no cinema e que me marcaram tanto, como linguagem reflexiva (o que não exclui o humor e a irreverência) e como ressignificação do mundo, que nunca quis ver em outras telas. Comprei e guardei. Talvez os veja em algum momento quando minha memória estiver embranquecendo e as imagens sumindo na estrada da imaginação.
O excesso de informações e de imagens de nossos dias atuais nos faz perder a capacidade de concentração, de significação e de reflexão. A certeza de que poderemos “ver de novo” nos torna distraídos demais para a fruição estética. Não quero carregar filmes em pendrives, hds ou na nuvem. Quero tê-los visceralmente em mim. Carregá-los na memória.
Para fruir o prazer do texto (no caso, o cinema), como já nos ensinara Barthes, temos que imaginá-lo irreprodutível e irrefreável. Luz apagada, nenhum controle remoto a mão. Ação!
(Analice Martins)