O cineasta espanhol Pedro Almodóvar acaba de receber o prêmio Lumière 2014 pelo conjunto de sua obra. Senhor de uma peculiaríssima linguagem cinematográfica, em que o uso de cores exuberantes sempre foi uma constante, Almodóvar publicou o seguinte depoimento, no jornal francês Le monde, no dia 9 deste mês de novembro. Por considerá-lo fundamental à compreensão de sua poética, além de comovente e visceral, traduzo-o abaixo:
“O cinema foi tudo para mim. Nasci nos anos 50 do século XX, um bom momento para o cinema, mas terrível para os espanhóis. Se eu tivesse nascido na América e se me chamasse Spielberg, me teriam oferecido uma câmera super 8 para que eu brincasse com ela. Na Espanha do pós-guerra, eu só tinha a minha própria vida e a da minha família para me iniciar no mundo da ficção.
A ficção, para mim, era o mundo do quintal de nossa casa, os vizinhos, minhas irmãs que aprendiam a costurar com suas amigas, os gatos, a matança dos animais, os ciganos, os cantores de flamenco que chegavam para os festejos do mês de agosto, o “twist”, um coelho esfolado, ainda pingando de sangue, pendurado debaixo da videira, a minha mãe que discutia com as vizinhas na frente da casa, na fresca, durante as longas noites de verão, comentando com elas histórias de incesto, suicídios (de pessoas que se jogaram no poço do quintal), ou ainda minha mãe e as vizinhas que cantavam lavando roupa na beira do rio.
A ficção para mim era tudo o que se passava na frente e atrás da grande tela do cinema ao ar livre, uma parede espessa, único fetiche ao qual eu permaneço fiel. Atrás desta parede branca pintada de cal, nós, os meninos, íamos fazer nossas necessidades. Mito e fisiologia: sem estar totalmente consciente disso, eu aprendia muito cedo o essencial.
A IMPOSIÇÃO DO PRETO
Minha mãe sempre foi o território onde tudo acontecia. Em 1987, eu lhe pedi para encenar um pequeno papel em “Mulheres à beira de um ataque de nervos”. Nós estávamos no camarim onde a figurinista lhe mostrava vestidos que havia escolhido, todos escuros. Eu estava na outra extremidade da sala, entretido com minhas ocupações. De repente, escutei minha mãe dizer à figurinista: “Eu não quero o preto, ache-me algo mais alegre”. E ela se pôs na mesma hora a lhe contar sua longa história com a cor preta. Eu escutava essa história pela primeira vez. Nunca antes eu ouvira minha mãe contá-la.
Quando estava grávida de mim, minha mãe só usava o preto porque, desde os três anos de idade, ela havia emendado um luto no outro. Tinha passado os trinta primeiros anos de sua vida vestida de preto. E ela não queria nunca mais usar essa cor, como dissera à camareira estupefata. Eu estava transtornado pelo que ouvia. Sequer imaginava que minha mãe vestia um luto imposto quando ficou grávida de mim.
Frequentemente evocam o uso que faço da cor em meus filmes. Para mim, isso sempre foi instintivo, nunca obedeceu a nenhum critério cinematográfico. Creio que eu procurava as cores do cinema da minha infância, o “technicolor”: as cores saturadas, brilhantes, impossíveis de serem conseguidas quimicamente nos laboratórios dos anos 80.
Depois da morte da minha mãe, eu comecei a dizer para mim mesmo que ela estava na origem das cores dos meus filmes. Eu adoro pensar que essa minha paixão pelas cores é a resposta da minha mãe a tantos anos de luto e de um negrume antinatural. Ainda que ela vestisse o preto quando estava grávida de mim, no seu ventre, germinava a vingança contra o sombrio monocromático imposto pela tradição.
Eu fui sua vingança. E espero tê-lo sido à altura. Faz trinta e cinco anos que eu tento ser, com todo o meu amor, essa vingança”.
(Analice Martins)