Durante esta última semana, reli, não por acaso, o ensaio “Se pudesses, deverias frequentar um outro mundo”, do livro “Banalogias”, de Francisco Bosco. É um texto sobre a passagem do tempo no luto, ou melhor, sobre sua imensidão, sua ausência de margens, sua bocarra. Quando o li, pela primeira vez, em 2006, esta imagem devoradora foi a que mais me prendeu, ao lado das referências a um conto de Caio Fernando Abreu de que gosto demais: “Sem Ana, blues”.
A tese de Bosco é de que, na vigência do amor, ou melhor, na presença do ser amado, o tempo é um animal doméstico. O afeto permanente cria uma espécie de rede protetora contra o tempo. Algo como dizer que o amor nos protege do tempo, porque o coloca em ordem, escalonando-o. O amor nos protege da queda, do precipício e do abismo. O amor nos suspende em seus braços e nos embala.
Já no luto, quando o ser amado se desfaz de sua materialidade e presença, o tempo é como um animal selvagem e voraz, interrompe qualquer fluxo contínuo, retira das prateleiras tudo que parecia docemente em ordem e nos lança em mar revolto, como discorre Bosco numa linda sequência de imagens: “No luto, o tempo faz eco, é oco, retorna, perde o rumo, some na distância ou morre a nossos pés. Sala enorme, deserto, mar oceano, qualquer cenário sem margens. No luto, o tempo é sem margens. Balança como um barco. E a gente se move sem ter onde segurar. Não tem corrimão. Nem cadeiras. Fica-se de pé o tempo todo. O tempo é todo, todo o tempo. O tempo enorme, impercorrível”. O tempo, no luto, é um transatlântico à deriva.
Se o ser amado pudesse voltar, as águas revoltas se acalmariam, e retornaríamos ao centro e à gravidade necessária para o restabelecimento de tudo que é vital. No amor desfeito, o luto nos exige uma realocação de nossos impulsos libidinais. É preciso que eles tenham uma nova direção e que preencham o vazio cavado em nossas vidas. Bosco explica, a partir de Freud, a nova economia temporal que se impõe no luto e a necessidade de ressignificar o mundo.
Na morte, o luto é igualmente o oco e o eco daquele que se foi. Mas a subtração é mais abrupta, a bocarra é mais assustadora. Por isso, na morte, a recordação é um alento, não é uma alfinetada. Na morte, a lembrança é apaziguadora, porque ela preenche de vida a matéria que se desfez. No amor desfeito, a recordação pode ser mais torturante, porque ela nos lembra o que poderia ter sido e não foi.
Na morte, então, a recordação faz parte da lógica temporal que nos reestrutura e nos redireciona as vontades. Recordar, etimologicamente, significa trazer de voltar ao coração, presentificar o passado, digamos assim. Recordar é interromper a cronologia, é embaralhar ponteiros, é descarrilar as horas, é pedir para descer numa outra estação. Recordar é enganar o império de Cronos. Recordar também faz viver, por que não?
O luto existe porque o amor não acaba com as partidas. O luto só existe porque o amor não acaba, necessariamente, quando o ser amado se vai. Por isso, a recordação é uma espécie de amortização do tempo. A recordação é a essência do gênero lírico, é o elemento que permite a fusão das temporalidades e o doce engodo de sua passagem.
São conhecidos os versos de Drummond, do poema “Memória”, que dizem que “as coisas findas,/ muito mais que lindas,/essas ficarão”. O poema se inicia com o desnorteamento da partida do ser amado: “Amar o perdido/deixa confundido/este coração”. E avança para o que me parece ser a função reguladora da memória: “Nada pode o olvido/ contra o sem sentido/ apelo do Não”.
A memória e a recordação revertem, de alguma forma, o que é finito. Esse prolongamento da vida na memória e nos corações é uma insurreição, uma rebeldia contra o que se diz finito e breve. No romance “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, há um momento em que o personagem André diz: “ o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? Que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? Limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória”.
É lá nos subterrâneos da memória que a vida se reinventa em pujança, é lá que as coisas permanecem “muito mais que lindas”, enganando o aviso das horas.
(Analice Martins)