Em outubro deste ano de 2013, naufragou, perto da ilha de Lampedusa na Itália ultramarina, mais um navio com cerca de 450 imigrantes ilegais, em sua maioria somalis e eritreus, que tendo partido do litoral da Líbia, na costa africana, pretendia alcançar a Europa Mediterrânea. Um drama europeu muito mais do que italiano.
Em abril de 2005, as labaredas que tingiram o céu parisiense, no maior incêndio das duas últimas décadas naquela capital, segundo informações da Cruz Vermelha, fizeram não apenas vinte mortos aproximadamente, mas também expuseram, na aparente indistinção dos corpos inertes entre cinzas e escombros, raízes e particularidades outras que aquele espaço urbano abriga.
A cartografia do nono distrito da capital parisiense dispunha, em espaços contíguos, o pequeno hotel Paris-Opéra, com uma única escada de emergência, e a multinacional Galeria Lafayette, que serviu de posto para os primeiros socorros dos feridos. O espaço globalizado e imperioso do capital abrigou durante algumas horas os feridos pobres de nacionalidades distintas.
Para além da morte trágica de crianças e adultos, aqueles escombros pareciam sinalizar uma outra dinâmica imobilizada pelo fogo: o fluxo migratório de africanos, portugueses, ucranianos. Segundo dados oficias, o hotel, com capacidade para setenta e seis hóspedes, localizado na Rue de Provence, 76, atrás da luxuosa galeria, fazia parte das políticas públicas da prefeitura parisiense no sentido de acomodar imigrantes africanos pobres.
O incêndio tornou visível a dinâmica deste “cosmopolitismo do pobre” nas metrópoles do mundo pós-industrial, tomando emprestada a expressão cunhada por Silviano Santiago, em livro homônimo, para expressar o que caracterizou como segunda investida do multiculturalismo: “Uma nova e segunda forma de multiculturalismo pretende dar conta do influxo de migrantes pobres, na maioria ex-camponeses, nas megalópoles pós-modernas, constituindo seus legítimos e clandestinos moradores, e resgatar, de permeio, grupos étnicos e sociais, economicamente desfavorecidos no processo assinalado do multiculturalismo a serviço do estado-nação”.
O incêndio também tornou visível o sujo da pobreza, decorrente do apelo do capital transnacional, sedento de mão-de-obra barata, que faz migrar, como afirma Santiago, “a pé, a nado, de trem, navio ou avião os desprivilegiados do mundo que estejam dispostos a fazer os chamados serviços do lar e de limpeza e aceitam transgredir as leis nacionais estabelecidas pelos serviços de migração”
Evocar, neste artigo, certos naufrágios dos últimos anos e o incêndio ocorrido no hotel Paris-Opéra é pensar em que medida as imposições do capital transnacional fazem eclodir um fluxo migratório desejavelmente clandestino, malgrado os esforços de políticas públicas habitacionais. É pensar ainda em que medida este deslocamento compulsório seria estratégia de inclusão, por conferir aos desempregados do mundo a perversidade da inclusão pela empregabilidade barata e clandestina. Ou se continuamos a falar tão-somente de uma mesma lógica operacional já identificada no multiculturalismo antigo, de que fala Santiago, ao se referir ao império do homem branco, europeu, ocidentalizando o mundo, só que agora convocando para o seu território, num fluxo centrípeto, os povos anteriormente colonizados e subjugados no além-mar.
Nesse sentido, Coisas belas e sujas, do diretor britânico Stephen Frears, lançado no Brasil em 2003, traz para a cena cultural cinematográfica o trânsito nervoso do cosmopolitismo de africanos, espanhóis, turcos, coreanos, na babel londrina, já que é, em Paris, Londres, Roma, Nova Iorque e São Paulo, que, segundo o crítico referido, unem-se os desempregados do mundo.
Londres é palco de uma “guerra de relatos”, na feliz expressão de Michel de Certeau. O filme de Frears apresenta a Londres excludente (ou perversamente includente) do capital, a Londres africana, turca, chinesa, dos que, como responde o médico argelino/dublê de recepcionista de hotel e motorista de táxi, a um inglês, são “invisíveis”: “Nós somos as pessoas que vocês não vêem. Somos nós que limpamos suas latrinas, dirigimos seus carros, chupamos seus paus”.
O hotel londrino, não-lugar na acepção antropológica de Marc Augé, é por excelência a possibilidade de identificações provisórias, em trânsito, não relacionais. É lá, microcosmo babélico da Londres pós-moderna, que a “estrangeiridade das línguas” e corpos transforma aquelas singularidades em mão-de-obra barata, incluindo o gerente espanhol do hotel (Juan/Sneaky), imigrante pobre legalizado, que mantém sob estreita vigília os que, sem passaporte e sem visto de permanência, trabalham na clandestinidade como camareiros, ascensoristas, recepcionistas.
(Analice Martins)