Estão em cartaz, nos cinemas do Rio de Janeiro, dois filmes imperdíveis, daqueles que vão além de suas histórias e seus modos de filmar, que constituem uma espécie de “lugar teórico”, forçando-nos à reflexão. Tramas distintas, concepções fílmicas e procedências também distintas, mas um tema em comum: a imaginação. O Aurélio apresenta várias acepções para a palavra. Vou me apoiar em três delas: faculdade de evocar imagens de objetos que já foram percebidos; faculdade de formar imagens de objetos que não foram percebidos; faculdade de realizar novas combinações de imagens.
“A caça” é uma produção dinamarquesa, de Thomas Vinterberg, um dos criadores do movimento Dogma 95, cujo maior expoente é Lars Von Tries, do premiado “Dogville”. Sem querer reerguer a bandeira do movimento, vale-se, no entanto, de alguns de seus princípios de arte engajada e naturalista, despindo-se de excessos de representação, utilizando poucas locações, às vezes, apenas uma, câmera na mão, pouco som externo, ou seja, um minimalismo funcional que não permite que a atenção do espectador se perca nos muitos recursos técnicos de que é capaz a “sétima arte”.
“A caça” pode ser apresentado tão somente como um lúcido e belo filme sobre a falsa acusação de pedofilia contra um professor do Ensino Infantil e a consequente histeria social que se cria em torno desta possibilidade. Este não é, porém, o fio que o liga ao francês “Dentro da casa”, de François Ozon, uma interessante aula de teoria da literatura fora de manuais e tratados. Neste, não há outra intenção que não seja a de esgarçar as fronteiras entre realidade e ficção, fato e fabulação, veracidade e verossimilhança.
Na trama de Ozon, o professor de literatura se deixa enredar nas malhas da letra, como diria Silviano Santiago, e da imaginação do jovem aluno que, com sedução e ardil, captura-o, afrouxando as relações entre ambos. Germain leciona numa escola de Ensino Médio entediado com o pouco retorno de seus jovens alunos até o momento em que se depara com a redação de Claude, que narra o cotidiano da casa e da família supostamente perfeita de um amigo da escola.
Espantado com a ousadia do aluno, pensa, de início, em reprimi-lo, mas, aos poucos, torna-se o sultão de “As Mil e uma Noites”, seduzido pela senha folhetinesca “à suivre” (a seguir), maneira pela qual Claude encerra cada texto entregue a Germain. Convencido do talento literário de Claude e disposto a ajudá-lo a tornar-se o escritor que não foi, passa a dar aulas de composição narrativa ao aluno, discutindo seu processo de criação, foco de observação, estruturação de personagens e acontecimentos, estratégias de sedução do leitor ou descarte de soluções fáceis.
Qual Sherazade, é Claude quem conduz a relação, fazendo com o que o professor e nós, espectadores e também seus sultões, fiquemos à mercê do fantástico poder da literatura, deslizando entre realidade e imaginação sem jamais sabermos quem vem primeiro, quem deflagra a criação da outra, onde uma falta e a outra complementa, porque como diz Germain: “De que vale a vida sem histórias para contar?”
Germain é a prova cabal de que é a imaginação que cria a realidade, ou, ao menos, produz um efeito de realidade potente sobre o leitor ou espectador. Por mais de uma vez, desespera-se ao crer que aquilo que Claude escreve, como, por exemplo, o suicído do amigo, seja um fato real da vida em que o sangue pulsa em nossas veias. Tropeça, cai no engodo, deixa-se arrastar pela fabulação do aluno. Neste momento, Claude liberta-se, emancipa-se, torna-se um criador, porque é capaz de “fazer crer”. Tudo que Platão temia ao expulsar os poetas de sua República.
É na capacidade de evocar imagens de objetos que já foram ou não percebidos e de realizar novas combinações entre elas que se estabelece a aproximação entre “Dentro da casa” e “A caça”, pois que é pela “virtude do muito imaginar”, como já nos ensinou Camões, que a pequena Klara, filha do melhor amigo de Lucas, o professor do Jardim de Infância no qual ela estuda, embaralha imagens de fatos ocorridos e sentimentos pulsantes e, julgando-se rejeitada pelo príncipe encantado e chegando até a beijá-lo ingenuamente para devolver-lhe a vida, acaba por empurrá-lo no precipício da marginalidade com a acusação de pedofilia.
Klara combina imagens da sexualidade iniciante do irmão, desejos e rejeições infantis com a beleza e a doçura do professor e produz, com isso, um falso fato de efeitos reais. É a partir da imaginação que se estabelece a injusta caça. Diferentemente de “Dentro da casa”, em que o espectador não consegue discernir o que é fato do que é imaginação, aqui, o espectador sabe quais são os fatos, mas fica impotente e refém diante da imaginação da personagem.
“Dentro da casa” termina com a situação que o originou: Claude, agora ao lado de Germain, diante de uma casa onde há muitas histórias que se passam e outras tantas que podem ser imaginadas. O filme termina com a máxima de qualquer manifestação artística: a imaginação pode ser mais potente do que a fiel observação da realidade.
(Analice Martins)