Glória Pires, Juliette Binoche, Jeanne Moreau, Barbara Sukowa. Lota de Macedo, Camile Claudel, Frida, Hannah Arendt. “Flores Raras”, “Camile Claudel, 1915”, “Uma dama em Paris”, “Hannah Arendt”. Três desses filmes são cinebiografias romanceadas, um é ficção. Todos altamente recomendáveis. Em todos, são fantásticas as atrizes e suas personagens.
Qualquer manifestação artística deve ser analisada a partir de seu tema e da linguagem que o constrói. Fora desta confluência desejável, não é difícil incorrer em truísmos e lugares comuns. Vou, no entanto, deixar de lado minhas preocupações analíticas. As linhas deste artigo são curtas para tal fôlego. Falo despretensiosamente apenas como mulher que, com a licença poética de Adélia Prado, carrega bandeira e é desdobrável. Acalmem-se! Não farei um discurso feminista com queima de sutiã em espaço público, mas apenas um registro breve da condição feminina retratada nos recentes filmes ainda em cartaz nas salas de cinema cariocas.
Em todas essas produções, as personagens são mulheres maduras. Nenhuma ninfeta. Nenhuma romântica indomável. Todas elas marcadas pelo ardor da paixão às causas e à vida, ainda que tais pulsões lhes tenham trazido o amargo da solidão e da incompreensão. Com exceção do filme “Uma dama em Paris”, protagonizado por Jeanne Moreau, ícone do cinema francês, os demais se baseiam em personalidades históricas, reconhecidas na arquitetura, na escultura e na filosofia. Suas histórias de vida são interpretadas por atrizes que souberam conviver com a passagem do tempo, despudoradas, portanto, em suas rugas iniciais ou definitivas. Atrizes que se libertaram do feitiço do espelho e do mito da eterna juventude física, que souberam vitalizar as marcas do tempo implacável, que, como nos adverte Tomás Antônio Gonzaga, “rouba do corpo as forças e do semblante a graça”.
Nesse sentido, loas a Glória Pires que, como algumas outras poucas atrizes brasileiras, não se rendeu às padronizações estéticas de nossa terra tupiniquim. Já o cinema europeu sempre tirou partido dos cabelos brancos e das rugas de suas antológicas atrizes. É bonito ver que a beleza e a graça não precisam se esgotar cruelmente na maturidade. Por isso, Jeanne Moreau pode interpretar uma personagem octogenária, como ela, e deixar resplandecer o viço que as linhas do tempo podem carregar. Interpreta uma imigrante estoniana em Paris, à frente dos preconceitos de sua época, e para quem a memória física do amor é ainda uma constante, como na linda cena em que apalpa o corpo do ex-amante, seguramente, trinta anos mais novo. Para ser verossímil, a tarefa só poderia ser realizada por uma atriz que reconhece que, na sua idade, não existem mais medos. Uma atriz atenta ao seu tempo, antenada, inclusive, como declarou ao jornal “O Globo”, com as manifestações das ruas brasileiras e capaz de compreender a importância da premiação do filme “A vida de Adele”, no último festival de Cannes, ainda inédito no Brasil.
Em um país moldado no bom-mocismo (até que nem tanto mais assim) de suas telenovelas, é libertador observar uma atriz como Glória Pires não recear interpretar, em “Flores raras”, uma personagem homossexual, Lota de Macedo, e sua história de amor com a poeta norte-amerciana Elizabeth Bishop com quem viveu por mais de uma década. A telenovela e o “jeito Globo de ser” não prostituíram a atriz, não a aprisionaram a tipos, caras, bocas, botox e silicone. É belo ver seu vigor em cena, na pele de uma personagem não menos dionisíaca. É belo ver que seu rosto e seu corpo não se amortalharam em um falso e histérico frescor adolescente.
A Camille Claudel da francesa Juliette Binoche, de “A liberdade é azul”, “O paciente inglês”, “Caché”, é comovente no desamparo da incompreensão a que é abandonada. O filme retrata, de forma concisa e lacônica, o período de sua internação em um sanatório nos arredores de Avignon, na França. As escolhas do diretor Bruno Dumont só conferem realismo à performance de Binoche que contracena com não-atores, internos reais. No cenário pétreo e descolorido desta região francesa, não há necessidade da evocação direta das esculturas de Claudel. Binoche, a atriz, esculpe e modela, com intensidade e rigor, o cruel preço das transgressões para uma mulher do início do século XX. O confinamento foi a paga para o que escapou à razão.
E é pela obstinada tentativa de compreender e pensar que a filósofa judia Hannah Arendt, discípula e ex-amante de Martin Heidegger, enfrenta o desprezo de todas as partes quando sugere que os equívocos das lideranças judaicas podem ter contribuído para a sanha nazista. A atriz alemã Barbara Sukowa se entrega com fervor à personagem por querer também, como declarou em entrevistas, mergulhar na compreensão do ser humano.
É difícil não estabelecer comparações com a estética hollywoodiana na qual imperam o plástico e o descartável. É impossível, diante de filmes assim, com personagens interpretadas por atrizes tão desassombradas e desafiadoras do tempo, não achar louvável que uma arte tão abrangente como o cinema empunhe a bandeira da transgressão, mesmo que pelo viés da dor e da solidão femininas.
Logo, não pude resistir a roubar e adaptar o título deste artigo daquele com que o crítico literário Italo Moriconi apresenta a obra de uma outra mulher “avant-la-garde”: a escritora Ana Cristina Cesar.
(Analice Martins)