Ainda que se pense, como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade, que toda luta com as palavras é vã, é sobre essa insistência que sempre se debruçou a literatura. A linguagem é uma tentativa de adentrar a realidade, apalpá-la, ordená-la para compreendê-la. Diferentemente do que acredita o senso comum, a linguagem não é espelho da realidade. Pelo contrário, ao trazer os fatos, objetos e sentimentos para a convenção do signo linguístico, que arbitra a relação entre significado (ideia) e significante (som), insere as coisas em uma ordem simbólica, na qual tudo que se diz, de certa forma, inventa-se, convenciona-se.
A linguagem literária é, nesse sentido, uma espécie de insurreição, desordenando a lógica dos signos linguísticos estabelecidos em uma língua determinada, a fim de oferecer aos leitores um outro modo de observação da realidade, ao nomeá-la de forma inesperada ou inusitada. Digamos, para simplificar, que a literatura, muito especialmente a poesia, é a reinvenção da invenção, a desordem que reordena. A literatura estabelece um código sobre outro. A literatura pode nascer dos espantos cotidianos, como propõe o livro de poemas Em alguma parte alguma (2010) do poeta Ferreira Gullar, mas dificilmente nascerá da gratuidade, da inspiração fortuita. Para achar, é preciso procurar, é preciso aguçar sentidos, é preciso esforço ininterrupto.
Foi também em 2010 que o poeta recebeu, além das muitas já recebidas ao longo de sua trajetória poética, a maior distinção em língua portuguesa concedida a um escritor pelo conjunto de sua obra: o prêmio Camões. Quando perguntado sobre o fato de ser reconhecido como o maior poeta vivo da literatura brasileira, respondeu, com modéstia e não sem algum humor, que tal designação também poderia dever-se à sua vida longeva. Gullar completou 80 anos em 2010.
O fato é que, Em alguma parte alguma, só reafirma a crença de que “o poeta/ não revela/ o oculto: inventa/ cria/ o que é dito”, pois que, antes de escrito, o poema “não é mais do que um aflito/ silêncio/ ante a página em branco”, ou seja, antes de ser o que é, palavra, “é a possibilidade/ do que não foi dito/ do que está/ por dizer/ e que/ por não ter sido dito/ não tem ser/ não é/ senão/ possibilidade de dizer”. Embora ciente de que “dizê-lo/ é não dizê-lo”, se não o dissesse, “não ouviria/ já que o poeta diz/ o que o leitor/ – se delirasse-/ diria”.
O questionamento deste estatuto da linguagem é a própria ontologia da literatura, não nos enganemos. Por isso talvez não seja equivocado afirmar que toda expressão literária seja metalinguística, que tenha a função direta ou indireta de dobrar-se sobre si mesma, de se olhar no espelho de seus signos para entender que a pretensão de tudo dizer é falha: “já que não é da linguagem/ dizer tudo/ ou é/ se se/ entender/ que o que foi dito/ é o que é/ e por isso/ nada há mais por dizer”.
A ideia, também recorrente na poética de um mais do que octogenário homem das letras, o poeta Manoel de Barros, de que o verbo tem que pegar delírio para dizer a realidade é a mesma presente em Gullar. Para este, “a coisa (o ser)/ repousa/ fora de toda/ fala/ ou ordem sintática”. Por isso, “delira” Gullar: “o perfume/ é um tipo de desordem/ a que o olfato/ põe ordem”. A existência palpável das coisas talvez nada signifique se não submetida a algum tipo de fala, como a poesia, que lhe dá uma existência possível, particular. Se a coisa repousa fora de toda fala, sua existência e sua percepção dependem, no entanto, de alguma linguagem que lhe dê forma.
É essa engenhosa reflexão sobre a linguagem poética que Gullar constrói meticulosamente, com aparente despretensão, em Alguma parte alguma, quando mostra que o jasmim, que é aroma apenas, fora do poema, é “amorfo sistema/ na noite do jardim”. O olfato o ordena, assim como o poema lhe dá forma. O poema fala o cheiro da flor e da fruta.
O poeta se debruça sobre a angústia de saber que a linguagem não pode tudo dizer, mas sabe igualmente que só ao dizer a realidade faz com que esta ganhe existência. Por isso, luta por erguer e entender o mundo em palavras, luta por esta consciência de si, que é se pensar e acredita que, com a morte, só será salvo do olvido pela palavra. A finitude das coisas é fato inelutável, como a pedra cuja “materialidade/ de “cousa/ não ousa”, porque a pedra existe em si e não para si, como o homem.
No poema “Uma pedra é uma pedra”, o poeta encerra toda sua poética: “o homem é uma/ aflição/ que repousa/ num corpo/ que ele/ de certo modo/ nega/ pois que esse corpo morre/ e assim/ o homem tenta/ livrar-se do fim/ que o atormenta/ e se inventa”, livrando-se, assim, do olvido. A literatura posterga a morte.
(Analice Martins)