Errâncias, exílios e literatura

 

Em Por outro lado (exílios), de 2014, a escritora francesa de ascendência vietnamita, Linda Lê, realiza, sob a forma de fragmentos ensaísticos, considerações sobre a condição dos estrangeiros exilados e refugiados, dos que estão em trânsito permanente, dos que pertencem a mais de uma cultura ao mesmo tempo, partindo de experiências da literatura.

Como exercício de reflexão, já que o livro ainda se encontra inédito no Brasil, experimento a tradução de alguns desses fragmentos:

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Toda literatura, sustenta Roberto Bolaño, em Entre parênteses, carrega nela mesma o exílio. Pouco importa se o escritor teve que partir aos vinte anos ou se ele nunca mudou de casa. Mesmo sem sair de nossas casas, não ignoramos o que o seja o banimento, a expulsão. A literatura de Kakfa nos ensinou suficientemente isso. A terra estrangeira, pergunta-se Bolaño, é uma realidade objetiva, geográfica ou, antes, uma construção mental em movimento perpétuo?  Não somos todos nós errantes, com sede de espaço, e que, segundo Maeterlinck, só crescemos à medida em que cultivamos os mistérios que nos oprimem. E qual seria o enigma mais insolúvel que este Outro que nos desafia e nos oferece um outro rosto como um livro a decifrar? Magnetizados pelo que talvez seja a nossa antítese, nós nos deixamos levar pelo irresistível charme do bizarro e do extraordinário, a fim de dar espaço àquilo que existe de limitado em nós.

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Para aquele que não tem mais pátria, a escrita pode tornar-se o lugar que ele habita, observa Adorno em Minima Moralia. Em estado de emigração, o escritor menos nostálgico faz a experiência de uma dupla desapropriação, já que ele não tem nem ponto de apoio nem centro de gravidade e sofre uma espécie de mutilação, impressão dolorosa que se fixa nele e que ele só consegue superar ultrapassando interiormente barreiras e fronteiras. Só no seu texto, ele se instala como se estive em sua própria casa. Ele só se sente à vontade em seus pensamentos  descabidos e quando coloca pelo avesso a sábia ordem do que nos é um abrigo, mas que pode também nos engolir. Ele só sente estima por ele mesmo quando se depara com a prova da estrangeiridade: é sob esta brilhante luz, se ela não o consumir, que ele progredirá no que lhe parece um aprendizado de si mesmo. Sua literatura carregará a marca do que Lukács chama o “exílio transcendental”, ela conterá visões transnacionais, ela dirá até onde é necessário não sucumbir às paixões gregárias, saber que nós somos todos exilados, desde que nós não nos agarremos ao orgulho nacional como uma âncora de saúde. Em Reflexões sobre exílio, Edward Said cita Huges de Saint-Victor, monge do século XII, que definia assim as diferentes atitudes diante do mundo: “O homem que pensa que sua pátria é doce é ainda um ingênuo novato; aquele a quem cada terra parece a natal já é forte; mas é aquele para quem o mundo inteiro é um espaço estrangeiro que é o perfeito. A alma ingênua se afeiçoou a um lugar do mundo; o homem forte estendeu suas ligações a todos os lugares e o homem perfeito não experimenta mais nenhuma ligação deste gênero”.

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Bertolt Brecht, em um de seus poemas, recusa que o chamem de emigrante porque dizia não fazer parte desses que partiram voluntariamente para “escolher livremente uma outra terra”. Não. Ele pertencia àqueles que fugiram, aos que foram expulsos, aos que foram proscritos, e o país que os recebeu, dizia ainda, não era uma casa, mas o exílio.

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Nossa época, lembra-nos Edward Said, “se caracteriza por uma situação de conflito moderno, por uma tendência imperialista e pelas ambições quase teológicas dos dirigentes totalitários”: vivemos a época dos refugiados, dos deslocamentos de populações, da imigração massiva. Cioran previa mesmo que ela seria aquela do romantismo dos apátridas: “Já se forma a imagem de um universo onde nenhuma pessoa terá direito ao pertencimento(…)Em cada cidadão dos dias de hoje germina um futuro homem desenraizado”.

(Analice Martins)

 

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