Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, assinalam dois momentos da literatura brasileira reveladores de uma tônica político-social, comprometida com a denúncia de um quadro de injustiças, desigualdades e violências. Este quadro encerra em sua base um antagonismo de classes, plasmado na imagem dos “dois brasis”.
Fabiano e Severino migram, forçosamente, buscando, em suas viagens/fugas, sobreviver à própria morte, dando, assim, algum sentido às suas vidas. Buscam, então, como ponto de chegada, a cidade grande, terra desconhecida, pouso de sentido, divisa de “novos horizontes”: “Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela”, afirma Fabiano em Vidas Secas
A cidade, nessas trajetórias, é um endosso da marginalização e da exclusão que os expulsara de suas terras originárias no interior do sertão nordestino. Os novos horizontes divisados reduplicam a situação original, motivadora da partida, das viagens empreendidas. Tais personagens desejam desfrutar da mesma condição de pertencimento, de enraizamento, metaforizadas nas imagens de “estar plantado, criar raízes, agarrar-se a terra”, recorrentes na obra de Graciliano Ramos. O deslocamento desses personagens, acossados pela seca e pela miséria, não rompe suas raízes, não supera o discurso localista, já que responde ao projeto modernista de configuração das diversidades regionais como parte da pretensão de construção identitária que vê, no desenho dessas diversidades, uma forma de escrever a nação.
Instituídos por uma estética realista, pautada em uma lógica discursiva que procura assegurar seu estatuto de verdade na ilusão de realidade, personagens e situações subordinam-se à linearidade temporal e ao encadeamento causa/consequência, elementos pré-figurados na estética realista canônica.
A narrativa brasileira contemporânea apresenta, em várias das suas recentes manifestações, uma tematização às avessas de algumas questões propostas pela linha de força do romance de 30. Estorvo, romance de Chico Buarque publicado em 1991, pode ser lido nessa espécie de contra-viagem.
É inegável a contraposição desses dois momentos da literatura brasileira: a literatura modernista imersa na construção de um projeto identitário nacional e a literatura contemporânea descomprometida desses projetos teleológicos, que, no entanto, nas entrelinhas, pode, por vezes, construir, por fragmentos e não mais por uma finalidade de totalização, a representação de um certo Brasil. Até mesmo porque, quando se fala de Chico Buarque, a pecha do descompromisso parece macular uma imagem do compositor, do cantor, do escritor, do cidadão Chico Buarque, soando inadmissível, de certa forma, para os pleitos de engajamento mais inculcados em nossa memória nacional.
Quem se depara com a leitura de Estorvo e de Budapeste (2003) perturba-se, turva-se, atropela-se, torporiza-se, estorva-se, com licença da paráfrase. Nessas obras em que parece haver uma antecipação de leitura pelo já apreendido e esperado é que a literatura se refaz e nos desafia.
Aos Fabianos e Severinos contrapõe-se agora um personagem sem nome, com poucas referências familiares, privado de uma memória que lhe permita reconhecer aqueles que imagina já ter visto, preso à urgência do cotidiano, do presente, amputado de projetos e de futuro, limitado ao seu “campo de visão”, preso a uma mala e por ela impulsionado a empreender uma fuga errática de uma situação não identificável, de um homem não identificado, saído, como diz o próprio personagem, há muito do seu campo de visão.
Em Estorvo, o personagem desloca-se num impulso de fuga, entrando e saindo de lugares aparentemente sem grandes vínculos causais ou sem nenhum, por espaços sempre repetidos, como a casa da irmã, a rodoviária, o sítio, a casa da ex-mulher, a casa da mãe etc. O personagem não pretende encontrar nenhum sentido ou significado nesses lugares, ao contrário do télos (finalidade) do alto modernismo.
Numa narrativa vertiginosa, em que os fatos se sucedem em velocidade estonteante, o personagem não mais realiza a viagem de Fabiano e Severino. Imerso na cidade, nos seus lugares não-identitários, não encontra neles nenhuma significação: a cidade nada significa para ele. Desenraizado no espaço geográfico e no tempo circular, vaga por eles, sempre em trânsito, fugindo de um inimigo sem contornos, num impasse sem soluções previsíveis, lógicas. Foge do nada ou de si mesmo, sem projetos, sem perspectivas, sem futuro.
(Analice Martins)