Experimentação e criação

Vivemos encurralados pela ameaça constante de que não está longe o dia em que nossos conhecimentos serão definitivamente substituídos por algum tipo de inteligência artificial capaz de pensar e criar. Ou seja, que a máquina não será mais um acessório ou ferramenta conduzida pela inteligência humana, mas agirá de forma autônoma e independente. Se esse dia nos chegar, estaremos diante de uma alteração paradigmática irreversível que relegará a existência humana a uma condição periférica.

A máquina, qualquer que seja ela, desvinculada da subordinação à inteligência humana, esvaziará de vez nossa condição de sujeitos criadores. Seremos algum reflexo distorcido de um princípio maquínico vital. Há quem pense que já estamos nesse estágio ou que não poderemos evitá-lo. Há talvez os que anseiem por tal realidade imaginando que nela estarão livres do fardo da humanidade: esta condição que nos faz pensar e, portanto, parafraseando Descartes, existir.

Tais reflexões têm uma razão de ser nem tão relevante assim, porque já experimentada no início do século XX com os movimentos vanguardistas, os famosos ISMOS que trouxerem para o primeiro plano da representação os bastidores da criação, a materialidade dos artefatos artísticos e que fraturaram a crença ainda persistente de que a arte possa copiar a vida. Futurismo, Dadaísmo, Cubismo, Impressionismo, Surrealismo, Expressionismo nos ensinaram que a palavra e a cor não são a coisa em si representada. Um cachimbo pintado não é um cachimbo palpável, mas tão-somente um truque, uma mágica, um engodo orquestrados por uma subjetividade criadora. Em outras palavras, por uma cognoscência, um individuo pensante e atravessado por muitas outras vozes pensantes.

Para criar, para dar existência, é necessária uma subjetividade pensante. No fundo, as experiências vanguardistas só reforçaram tal estatuto. Ao realizarem experiências com as palavras e a língua, como no Dadaísmo, fazendo crer que uma ordem aleatória para as palavras pudesse ser um discurso, experimentaram a elasticidade da língua, esgarçaram-na para que, liberta da linearidade previsível, pudesse significar longe dos arbítrios discursivos.

As experiências foram muito válidas, tanto que ficaram conhecidas como vanguardas históricas. Contribuíram para estremecer, arejar e dilatar sentidos e nos legaram a certeza de que a desconstrução e a fragmentação são operações que exigem uma “engenharia” intelectual e autoral. Quando os dadaístas propuseram que a fórmula de criação poética se realizaria com palavras recortadas de jornais, colocadas em um saco, retiradas aleatoriamente e copiadas em um papel, anteciparam princípio semelhante ao aplicativo “What would I say?” que, como um programa-robô, lê o histórico das postagens dos perfis do Facebook e as reordena aleatoriamente. Ora, se não há uma subjetividade construtora, a criação poética seria fruto do acaso, esta sombra indesejada para uma certa linhagem de poetas?

Sem dúvida, são os modos de ler que também legitimam o que é literário ou não, mas, neste caso, o leitor é movido por sua subjetividade pensante e passível de ser criadora. Em nossos tempos simulacrais e preguiçosos, por que não experimentar? Em tempos de escritores instantâneos (postou, criou!), a moda pode pegar. E aí, dada a quantidade de aficionados pelo Facebook, poderíamos ter um “boom” de novos poetas?

Tristes tempos esses em que brincadeiras autômatas e programas-robôs preenchem o vazio de nossas subjetividades, em que um mundo de não-leitores ou de leitores umbigueiros, aqueles que só leem postagens imbecilizantes, podem ser catapultados à condição de escritores e, quem sabe,  pertencerem a alguma antologia dos tempos maquínicos.

Pensar para quê? Ler para quê? Há programas-robôs que o fazem por nós e que agora também criariam por nós. A etimologia da palavra “criar” remete à ideia de erguer, produzir, tirar do nada, colocar de pé. Logo, não me parece que a criação artística possa ser atributo de máquinas e programas desprovidos de singularidades marcadas por atravessamentos psíquico-sociais.

É inegável a importância do experimentalismo como mola propulsora da criação artística. De fato, é preciso rasgar, costurar, encaixar, montar, ousar, reinventar. É preciso mexer, sacudir para, depois, (re)ordenar a partir de um ponto de vista escolhido por um indivíduo, ainda que caoticamente pensante. O caos também é condição de criação.

Já a supressão das subjetividades só pode nos conduzir a uma condição objetal e marginalizada onde permaneceremos em um limbo asfixiante.

(Analice Martins) 

 

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