Para nossos tempos velozes e furiosos, a lanterna mágica é um brinquedo démodé, estático demais, pouco interativo, embora tenha sido uma invenção bastante revolucionária, constituindo uma das formas rudimentares do cinema. Toda criança, nascida no século XXI, deveria ganhar uma lanterna mágica antes de qualquer dvd, tablet ou ipad. A experiência de ver o mundo em câmera lenta, em ritmo slow, por quadros cuja animação dependeria da sua imaginação em vez de algum dispositivo, representaria uma certa fantasmagoria sobre o mundo, forçando-a à contemplação antes da interatividade obsessiva.
A lanterna mágica está para a cidade moderna, assim como o caleidoscópio, talvez, para a cidade pós-moderna. Nossa memória pode assumir, no entanto, as duas funções. Pode seccionar e congelar ou pode embaralhar, em profusão de cores e associações, o que a película das retinas reteve em viagens.
Não gosto de filmar quando viajo. Provavelmente, por alguma cafonice do espírito. Mas fotografo. Com máquinas digitais, não há mais poses, posições ou ângulos, nada escapa à fúria vertiginosa das lentes. Depois, sem nenhum incômodo, descartamos tudo que não nos interessa em busca da imagem perfeita. O descarte é a razão de ser da fotografia digital. Com isso nos tornamos menos atentos às cenas a serem capturadas. A máquina o fará por nós. Por um lado, isso é ótimo. Teremos um repertório de imagens à nossa disposição para reconstituirmos o passo a passo dos lugares visitados. Por outro, é um recurso danoso, pois torna nossa percepção preguiçosa e pouco aguda. Há quem se contente apenas com o álbum físico ou digital construído depois. Ou melhor, há quem só viaje porque o facebook existe.
Drummond tem um lindo poema chamado “Lanterna Mágica” em que Minas Gerais aparece em quadros pontuais, recortando sua memória afetiva dos lugares. Cada cidade, um poema. De cada poema, saltam imagens poderosas de que só a palavra – como tradução e invenção da realidade – seria capaz, muito mais do que uma imagem produzida por recursos técnicos ou tecnológicos.
Vou fazer aqui a lanterna mágica de minha viagem pela Rivièra Francesa e pelos Alpes Marítimos. Só com palavras, como o poeta. Mas tão-somente como exercício da minha memória afetiva de cronista e sem nenhuma pretensão literária:
I- As cidades encravadas nas montanhas, despencando sobre as encostas rochosas nem sempre parecem reais. Saint-Paul- de Vence, Biot, Èze, Mougins, Grasse sustentam-se no tempo, muito mais do que nas pedras. Algumas encasteladas por muros medievais e reféns do turismo avassalador. Suas existências, para mim, só saíram de certa fantasmagoria com o tilintar de talhares se descruzando à hora do almoço, quando o badalar dos sinos de uma igreja se fazia ouvir altivo, quando, pios, os fiéis ouviam as palavras do padre ou quando crianças chegavam das escolas, mãos dadas com os pais. Ali o cenário se desfazia, e os bastidores da vida real se insinuavam sorrateiros. Tudo quase sempre entre pedras.
II- É interessante ver Matisse, Renoir, Chagall, Léger, Braque e Picasso em museus que procuram reconstruir a história ou a passagem desses artistas em suas cidades. Há quem possa torcer o nariz e dizer que não estão lá as maiores obras desses pintores, mas estão suas histórias ou a reconstrução delas: esboços, desenhos, as naturezas mortas do início das trajetórias e as que lhes deram notoriedade, experimentos com outras linguagens, como a escultura e a cerâmica, o flerte com a literatura. Todas essas visitas me emocionaram. Registro as duas últimas: a relação de Braque com a literatura, seus desenhos para obras de vários escritores e seu caderno com desenhos e reflexões concisas. Às vezes, não mais do que uma oração sobre a criação artística. Tais como: “Eu adoro a regra que corrige a emoção” ou “É preciso escolher – uma coisa não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e verossímil”. Picasso em Antibes. O que é o museu, que antes era Grimaldi e que passou a se chamar Picasso, em função das obras que o pintor deixou no período em que pôde usar suas instalações como ateliê? Estão lá, por exemplo, “Ulisses e as sereias” e “A alegria de viver” (“La joie de vivre”). O castelo despenca sobre o azul das águas de Antibes.
São museus que entrelaçam vida e obra à cidade e que recuperam os contextos originais da produção desses artistas.
III- Leituras do ”Le monde”: O êxito dos liceus franceses; a responsabilidade do governo francês no genocídio de Ruanda há 20 anos; o livro “L’Algèrie sur le vif” do fotógrafo Ramzy Bemsaadi; livros que discutem o que leva um homem a sacrificar tudo para dar ao mundo uma obra, romances que exploram o mistério da vocação artística , em especial, a literária.
IV- Chagall disse que ele era azul, como Rembrandt era marrom. A Rivièra Francesa é azul assim como o vinho, onipresente às mesas, é o rosé.
(Analice Matins)