Ainda que não pareça nada complexa, a relação entre literatura e letra de música na sala de aula é bastante delicada. Pela facilidade de incorporação de canções ao repertório literário a ser analisado, tal relação parece mais do que bem vinda. E o é. A exigência de uma perspectiva interdisciplinar no ensino promove os diálogos entre a literatura e as demais manifestações artísticas: música, pintura, cinema, teatro. Como fica, no entanto, o professor do Ensino Básico cuja formação docente se deu de forma estanque, sem os entrelaçamentos postulados pela LDB e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais? Aí é que se criam os impasses que podem fazer naufragar as melhores propostas.
A inclusão da canção popular na sala de aula requer um posicionamento teórico do professor. Relembro aqui a intempestividade do poeta Bruno Tolentino, falecido em 2007, quando do seu retorno ao Brasil, esbravejando pelos jornais, que, nas escolas brasileiras, não se estudava mais o cânone. Só compositores da MPB. Onde estavam os autores clássicos, pelo menos de uma tradição literária nacional? Brados e excentricidade à parte, o que o poeta identificou – como negatividade – foi a relação entre a literatura brasileira e a canção, a música popular, porque não teve tempo de acompanhar o rap, o hip-hop etc.
Retomo a constatação, oriunda de pesquisa sobre professores e livros didáticos, realizada por Eliana Yunes e a que me referi no artigo da semana passada: “Um exame desta abordagem nos livros didáticos revela que o tratamento se resume a uma análise quase estilística das canções populares da trindade da MPB, Chico, Gil, Caetano, passando de longe pelo fenômeno cultural do tropicalismo e sem qualquer alusão ao plano/pauta musical do movimento. Manifestações como o rap, o hip-hop, o funk, o rock estão longe de chegar aos bancos escolares, agravado o fato quando se pensa na origem social do discente da rede pública”.
Para além desta constatação que soa também como advertência sobre o que não se deveria fazer e do lamento pela carência de uma análise de fundo mais culturalista, ou seja, histórico-social, há outro impasse que poderia ser um catalisador de reflexões: Letra de música é poesia? Tal reflexão teórica deveria preceder, do ponto de vista docente, uma inclusão indiscriminada de canções como parte do repertório literário, em especial o poético, oferecido ao aluno para análise. Refiro-me ao ensino da literatura e não a uma prática interpretativa que não esteja atrelada às especificidades do literário, em que parodiando o compositor (ou seria o poeta?): “qualquer maneira de ler vale a pena”.
Recordo-me que, em 2003, quando foi publicada a antologia Veneno antimonotonia: os melhores poemas e canções contra o tédio, que reúne poetas “de ofício” e outros tomados como tais, mas compositores originalmente, Adriana Calcanhoto declarou ao Jornal do Brasil, seu espanto ao se encontrar lado a lado com João Cabral de Melo Neto. A surpresa (ou seria modéstia?) da compositora/cantora revela a (des)marcação dos lugares na cultura contemporânea, o borramento intencional de fronteiras, o que repercute, sem dúvida, no ensino e na sua bem vinda crise. Na antologia, organizada por Eucanaã Ferraz, lá estão, lado a lado, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque, Caetano Veloso, Cazuza (de quem rouba o título), Gilberto Gil, Vinícius de Moraes, Noel Rosa, Ana Cristina César, Antônio Cícero, Aldir Blanc, Armando Freitas Filho, Mário Quintana, Murilo Mendes, Oswald de Andrade, Wally Salomão.
Tal (des)marcação de território, do ponto de vista do organizador, obedece a critérios, comungados por outros críticos, que entendem que é possível sim, em alguns casos, ler a letra de canção como poesia, como texto literário. Como bem argumenta Francisco Bosco, escritor, letrista, ensaísta, doutor em Teoria da Literatura, no belo ensaio “Letra de música é poesia?” a letra é feita para a música, “pertence a uma totalidade estética na qual estão em jogo todos os elementos musicais, portanto, não-verbais”. Assim, é de caráter heterotélico, obedece a uma finalidade de existência fora de si mesma, destina-se a um outro meio. A canção é a letra da música, amalgamada ao fim a que se destina: a música. É feita para portanto. Vive dessa reciprocidade. Já o poema encerra-se em si mesmo, não se destina a outro meio, cumpre-se em si mesmo, é de caráter autotélico. A partir desta lógica, são considerados poemas aquelas letras que apresentam uma espécie de suplementaridade, “põem-se de pé” sozinhas, independentemente do resto da sua totalidade estética, são perpetuadas e lidas sem o amparo ou mesmo no abandono das músicas às quais se destinaram. É esta autonomia que atribui existência poética às letras de muitas canções.
Então, não se trata aqui de alta e baixa culturas ou de altas literaturas e cultura de massa, fronteiras já devidamente atravessadas pela contemporaneidade. Trata-se de um entendimento, necessariamente contextualizado, de um modo específico de usar a linguagem, construído em cada época, historicamente variável. Sem tal balizamento, tudo é pretexto, escapatória, deslocamento criminoso, assassinato literário e falsidade pedagógica.
(Analice Martins)