Diz o poeta Antonio Cicero que “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la./ Em cofre não se guarda coisa alguma./ Em cofre perde-se a coisa à vista./ Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por/ admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado”. Os versos do poema “Guardar” que intitula seu livro, de 2006, me fazem pensar na função que os museus hoje desempenham na cultura de uma sociedade.
Como outros pelo mundo, o MAR (Museu de Arte do Rio) se prolonga na paisagem urbana carioca. Quer atravessar paredes e janelas. Como no movimento das ondas, avança para depois tragar. Inaugurado na última sexta-feira, este projeto é uma parceria entre a prefeitura do Rio e a Fundação Roberto Marinho, orçado em 79 milhões, mas que valerá cada centavo se cumprir uma das missões a que se propõe: educar o olhar.
As instalações do museu são dois prédios de arquiteturas distintas em estilo e épocas, mas unidos por uma espécie de onda que a eles se superpõe. Sua travessia é a dialética na qual se estrutura o poema de Cicero: “guardar uma coisa é iluminá-la ou ser por ela iluminado”. No prédio tombado, o Palacete Dom João VI, concentra-se o acervo, aquilo que deve ser olhado, fitado, admirado. No outro, um antigo hospital da Polícia Civil agora reformado, localiza-se o aprendizado do olhar: um espaço com biblioteca, auditório e salas de aula para a capacitação de professores. Esses que, de alguma forma, acendem a luz.
Ainda que pesem as delicadas relações entre arte e mercado, arte e cultura de massa, arte e consumo, “museumania”, discussões, em parte catalisadas por Andreas Huyssen, nada roubaria os horizontes do projeto, ou seja, ser um equipamento cultural que quer estar enraizado no seu entorno: na Gamboa, na Saúde e no Santo Cristo, as adjacências portuárias onde se instalou. Os operários que suaram seus esforços durante as obras de construção visitaram, com suas famílias, as exposições. Moradores destas adjacências estão sendo recrutados e capacitados para trabalharem como monitores. Algo bastante diferente da modernização excludente do início do século XX no governo do prefeito Pereira Passos.
O diferencial utópico deste MAR é tornar-se um espaço intimamente ligado à educação. A Escola do Olhar, que tem a intenção de receber e capacitar 2000 professores por ano, é a parte do museu que deve estar mais protegida, imune às traças, ao fogo e aos roubos. Lá se formarão as peças mais preciosas de seu acervo imaterial: o sujeito crítico que saberá conceber e entender a historicidade das manifestações artísticas.
Se o ânimo deste projeto vem insuflado pelas obras de revitalização da Zona Portuária carioca, pelo alardeado Museu do Amanhã, pelas Olimpíadas e pela Copa 2014, tratemos nós de nos apossarmos destas conquistas, apropriarmo-nos da cidade e de seus usos. Ergamos com os ventos que ora sopram a nosso favor uma nova forma de estar na cidade.
Quando o poeta nos alerta para o fato de que guardar uma coisa não é escondê-la, penso que também esta deva ser a preocupação precípua de um museu. Ao recolher, proteger e tornar pública uma obra aos olhos de todos, cumpre parte de sua responsabilidade cultural e social, qual seja: iluminar, jogar luz sobre os patrimônios culturais de uma cidade, de um país ou de muitas nações.
É, no entanto, quando permite que os indivíduos sejam iluminados por estes patrimônios, que sua função extrapola a dimensão meramente estética. Ao permitir que os indivíduos possam efetivamente fruir o que veem, pois serão capazes de também entender, um museu passa a ter uma dimensão transformadora.
A entrada inteira custará R$8,00. Isso é menos do que uma garrafa de cerveja na Lapa, as unhas num salão de beleza, um lanche nas redes do Bob’s, McDonald’s ou Habib’s. Não quero parecer ranzinza. Gosto de cerveja e até como um kibe, vez ou outra, no Habib’s, mas nós, professores, precisamos educar nossos sentidos, nossos olhares. Quando digo educar, refiro-me tão-somente ao seu sentido formativo, de “télos” (finalidade, fim).
Não foi sem polêmicas que o MAR se levantou. As solenidades da inauguração não abafaram os bastidores do projeto. Basta uma rápida conferida na entrevista de seu diretor cultural, Paulo Herkenhoff, concedida à Folha de São Paulo e postada no site www.artecapital.net, para que essas ilusões se desfaçam. Diz ele que não quer “um museu que seja uma vitrine, um museu dos grandes fetiches, dos recordes de aquisição, mas onde as coisas entram porque podem produzir algum sentido. É um museu de produção do pensamento”.
Esta afirmação não deixa de ser uma provocação, mas é sobretudo um divisor de águas. Sem abrir mão da atribuição de colecionar, característica distintiva entre museus e centros de cultura, por exemplo, Herkenhoff reafirma a intenção de ser um “espaço de reflexão”, daí a parceria com as universidades que têm interesse na pesquisa. Além disso, registra veemente que este museu é da cidade do Rio, para a população do Rio e pensado para rede pública municipal de ensino.
Ao priorizar a cidade e sua rede de ensino, Herkenhoff vê o turismo como o resultado de um processo e não como seu norte: “Se for bom para a rede pública, será bom para os cidadãos do Rio, e, se for bom para o cidadão do Rio, será bom para os turistas”.
Confesso que estou “mareada”. Como ainda não pude me deslocar fisicamente até o Rio, entrei apressada no site www.museumar.com, saí à cata das oficinas, dos cursos profissionalizantes, das residências de artistas no Morro da Conceição, mas está tudo em construção. Ainda há que esperar, mas que essa onda nos trague.
(Analice Martins)