A classificação de um filme como pertencente à estética “on the road” remete obviamente ao livro de Jack Kerouak, publicado em 1957, e um clássico no sentido de que inaugura um paradigma sempre reconvocado e relido por escritores e cineastas de nacionalidades e culturas distintas em décadas sucessivas. Portanto, é um livro que faz eco, uma espécie de “inaugurador de discursividades”, como diria o filósofo Michel Foucault em outra situação.
A expressão “on the road” também representa, em uma contexto mais específico, os anseios de certa geração americana dos anos 40, desejosa de experiências libertadoras, fossem pelo sexo ou pela alma, representativa de uma oposição à sociedade industrial e militarizada.
Mais do que um livro, a expressão “on the road” designa também uma estética literária e cinematográfica em que a estrada percorrida a esmo, aleatoriamente, sem mapas ou cartografias prévias, corresponderia a uma espécie de “educação sentimental” às avessas. A experiência errática seria mais profícua porque promoveria, pelo deslocamento, um encontro consigo mesmo, a partir do outro, do estranho, do não familiar, para relembrar as maravilhosas contribuições freudianas neste sentido da formação psíquica e sociológica do indivíduo.
O estranho e a estrada funcionariam como elementos construtores do “self”, seja pelo desligamento temporário ou definitivo das raízes, seja pelo reencontro com elas. Nesta lógica, o aleatório é uma promessa de futuro, antes inviável. Estas sucintas considerações podem servir como apresentação crítica do filme, em cartaz nos cinemas cariocas, ”Ela vai” (“Elle s’en va”, de Emmanuelle Bercot), estrelado por Catherine Deneuve. Um filme solar como a própria diretora o descreve.
A admiração da diretora por Deneuve, um dos ícones do cinema francês, impulsiona um filme em que, além de ser a protagonista, a magnitude cênica de Deneuve se impõe, numa espécie de retrospectiva da trajetória de sua beleza “solar” e dionisíaca. A atriz interpreta Bettie, uma ex-miss da Bretanha, dona de um restaurante numa cidadezinha francesa perdida no tempo, ou melhor, fora do tempo e de certa contemporaneidade, o que torna o filme uma homenagem não só à própria atriz como a uma França literariamente perdida em nossos imaginários.
Bettie, após uma desilusão amorosa, a traição do amante que a abandona para viver com uma mulher de 25 anos, desorienta-se, perde o prumo, não se reconhece em seu cotidiano, entra no carro e cai na estrada, num desligamento temporário da ordem cotidiana das coisas.
No caminho sem percursos, em que pequenas estradas vão-se delineando ao sabor do acaso ou das necessidades, Bettie permite-se conviver com o diferente, ser tocada por ele, ver a si mesma como outra. Neste intervalo, é surpreendida pelo pedido da filha – com a qual mantinha uma relação distante e conflituosa – para que pegasse o neto e o levasse até o avô paterno, para que ela pudesse fazer uma entrevista de trabalho.
A estrada, neste momento, ganha não só novo rumo como também nova significação. O reencontro com o neto, de início arredio, é uma redescoberta do afeto esquecido. E é ele, sem o saber, quem a reconduz ao amor no contato com o avô solitário e infenso à vida. Nas estradas encruzilhadas às quais Bettie chega inicialmente por impulso, a vida volta a pulsar, relações desgastadas e abandonadas ganham uma nova direção (com a filha, o neto e a mãe), outras surgem a partir deste impulso de desgarramento que provoca reordenações e aprendizagens.
Vale destacar o despojamento de Deneuve ao aceitar o desafio de contracenar com não-atores. Deste improviso, surgem atuações comoventes, espontâneas e críveis. As participações de Nemo Schiffman, como o neto, e de Claude Gensac, como a mãe da protagonista, são impagáveis. Vale ainda uma vez destacar, para os fãs de carteirinha, o encanto da eterna “belle de jour”, além da sedução desta França interiorana e deslumbrante marcada de cores e sabores.
Fica a dica do filme e o desejo de que 2014 possa guardar, para todos nós, um pouco do espírito “on the road.
(Analice Martins)