A 30ª Bienal do Livro do Rio terminou no domingo com um público estimado de seiscentos mil visitantes, dois milhões e meio de exemplares vendidos e R$ 58 milhões de faturamento, segundo dados apresentados, na coluna do último sábado da economista Míriam Leitão, no jornal “O Globo”. Para ela, há, portanto, motivos para comemoração.
Custei a entender o que o artigo “A festa do livro” estava fazendo, numa seção de economia, e o que a senhora Leitão tinha a dizer sobre uma Bienal. Ingenuidade minha! Eram comentários baseados, sobretudo, em estatísticas e percentuais da Comissão Organizadora do evento e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Vista pelo prisma comercial, a Bienal é um negócio da China!
Com exceção do depoimento brincalhão de Rui Campos, o dono da rede Travessa, que disse que recorreria a um traficante caso os livros acabassem, discordo frontalmente de quase todas as impressões entusiasmadas de Leitão sobre a observação do movimento do público entre estandes e auditórios. Minhas resistências a esse formato de evento só se avolumaram nesta minha ida ao Riocentro, depois de muitos anos sem pisar lá. Troquei há muito a Bienal pela Primavera dos Livros, atualmente sediada no Museu da República no Catete. Não só pela razão óbvia da distância, mas pelas ambições mais salutares da Primavera.
O negócio do livro é o tom do texto de Leitão. Um negócio que poderia até nos honrar se traduzisse números reais ou aproximados de leitores efetivos. Um consumidor de livros em Bienais é ou será um leitor constante? É apenas um leitor episódico? Que estratégias podem ser empregadas para capturá-lo? Parece-me que quase toda forma de fazer ler valeria a pena se o livro escolhido carregasse informações, reflexões, estórias e versos não descartáveis, com alguma durabilidade em nossas memórias e impacto em nossas vidas.
Uma grande amiga sempre me dizia que lia a coleção “Sabrina” para dormir. Eu achava engraçado este indutor de sono. Livros soníferos, feitos para dormir de imediato. Para a mais valia de sua leitura, “Sabrina” era literatura descartável, que nem coçava, nem entretinha verdadeiramente e que não a deixava em estado de alerta nem de sobressalto.
Na segunda-feira em que fui à Bienal, todas as sacolinhas que vi crianças e adolescentes carregando guardavam coisas estranhíssimas. Quando percebi que naquele dia não haveria nenhuma programação no “Café Literário” e desisti de me colocar como leitora à procura de títulos interessantes com preços convidativos, porque não sei folhear nada em meio a multidões, passei a me comportar como detetive ou cão de caça farejando o que aqueles jovens carregavam em suas sacolinhas. Colei-me neles, segui-os sem que percebessem, atravessei as rodinhas que formavam no chão, cansados dos percursos entre estandes. Quase cometi a indiscrição de pedir que abrissem os pacotes e me mostrassem “seus documentos”. Montei uma blitz mesmo, uma patrulha. Que horror! Mas eu precisava saber o que, via de regra, procura este público. Ah, que desolação quando os via exibindo orgulhosos o último livro da série Assassin’s Creeds, de Oliver Bowden. Mais orgulhosos ainda exibiam nos celulares a foto tirada com o boneco gigante do herói vingador, plantado na porta do estande da livraria. Vi de tudo, até álbum das Chiquititas.
Não se trata do fim do livro, mas com certeza do fim dos tempos. Pronto! Falei! Podem me chamar de alienada, elitista ou qualquer coisa parecida. É alentador saber que, seja em suporte digital, seja em suporte impresso, o livro sobreviverá. Mas que estórias carregará ou reinventará? Que contribuições poderá trazer à nossa formação e mesmo ao nosso entretenimento?
O Riocentro é enorme, mas poucos eram os espaços para a leitura. Lamento dizer que nada lá convidava à leitura. Ainda que as gerações mais jovens tenham a capacidade de realizar muitas tarefas simultaneamente, para ler, seja lá o que for, algum silêncio é necessário. Uma Bienal é território ruidoso, alvoroçado, nervoso. Atualmente com muitos flashes e filas. Leitão achou graça na “criançada correndo atrás dos ídolos”: Thalita Rebouças, Fábio Porchat. Não deveriam estar correndo atrás dos livros?
A semântica do artigo de Leitão é sofrível: festa, negócio, ídolos. Gostaria de festejar outras coisas: aumento do número de leitores, de bibliotecas públicas, de professores que leem, de pessoas que acreditam que ler pode fazer a diferença. Não são números de vendas que carimbarão nosso passaporte rumo à festa da cidadania.
Vale lembrar que o autor da mais recente tragédia brasileira, o adolescente Marcelo Pesseghini de apenas 13 anos, que matou os pais, a avó e uma tia em São Paulo, suicidando-se depois, era fã do game Assassin’s Creeds. Fim dos sonhos, fim dos tempos.
(Analice Martins)