Tecnologia e crítica literária

A editora francesa “Short Édition” anunciou, no site “Actualité”, que está desenvolvendo um algoritmo capaz de avaliar, em alguns segundos, a qualidade literária de obras que lhe sejam submetidas. Essa invenção tem provocado suores frios em críticos literários. Segundo Quentin Pleplé, cofundador da editora, sua empresa está trabalhando no momento com agências especializadas, como a LIRIS (Laboratório de Informática em Imagem e Sistemas de Informação), para desenvolver uma fórmula matemática que combine “Data Mining” (mineração de dados) e “Big Data” (dados volumosos).

O processo por trás desses complexos cálculos se explica com facilidade. A inteligência artificial da máquina se desenvolverá inicialmente a partir de um painel de 25.000 trabalhos publicados pela editora “Short”, obras que já foram avaliadas previamente por um mínimo de cinco leitores humanos. Com base nos resultados dos primeiros testes, a editora “vai começar a informar e alimentar a máquina: a inteligência artificial vai processar os dados e fazer ligações entre a qualidade e as exigências”.

O computador deverá, posteriormente, ser capaz de avaliar por si mesmo um livro, a partir de vários critérios. O algoritmo poderá identificar, separadamente, a ortografia a e pontuação, a repetição de padrões semânticos (repetições), o campo lexical (vocabulário, registro de linguagem) e a extensão de frases e parágrafos. De forma mais sofisticada, ele poderá avaliar o estilo do autor, qualificado pelo número de advérbios, adjetivos, pronomes, verbos, os substantivos empregados e a legibilidade do texto, que pode ser desde uma obra infantil até um tratado de economia.

Essa descoberta não poderia parar por aí. O fundador da “Short Édition” imagina já poder vender sua pequena maravilha tecnológica a outros atores do mundo dos livros, das mídias às bibliotecas: “Ela poderá, por exemplo, servir para as bibliotecas na classificação de livros digitalizados, mas também para a imprensa. Para as editoras, ela poderá fornecer uma primeira visão sobre as obras recebidas”, assegura Quentin Pleplé.

Uma tal novidade levanta, de imediato, muitas questões de ordem moral. Substituir o homem pela máquina não acarretará inevitavelmente uma padronização da paisagem literária? E sobre a especificidade de um autor? Pensemos em Louis-Ferdinand Céline, por exemplo, cujas qualidades não são de modo algum redutíveis à soma de todos esses critérios estilísticos.

A editora pretende apaziguar essas dúvidas legítimas. Aos que já veem nesta invenção o fim do mundo adverte: “Não se trata de substituir o nosso conselho editorial por uma máquina, mas permitir que ela sirva como um assistente de filtro, na detecção menos das qualidades literárias do que da ausência delas: “Na verdade, a máquina servirá simplesmente para fazer uma pré-seleção a fim de poupar o tempo precioso dos editores que poderão, então, realizar seu trabalho, insubstituível, de forma mais eficiente. Os matemáticos de mãos dadas com a literatura, a tecnologia a serviço do ser humano, não o contrário”.

ESCLARECIMENTOS:

Esta notícia, traduzida por mim, foi publicada no jornal francês Le Figaro e pode ser consultada no seguinte endereço eletrônico: http://www.lefigaro.fr/livres/2014/07/25/03005-20140725ARTFIG00142-un-algorithme-pour-juger-de-la-qualite-d-un-livre.php. Em outro artigo, comentarei algo igualmente capaz de provocar suores frios: a informação de que a “Robot Associate” já escreveu seus primeiros artigos.

Antes, quero fazer algumas considerações até certo ponto banais, mas sem as quais todo esse alarde tecnológico pode gerar a crença equivocada e disseminada de que uma máquina pode pensar por si mesma e ser capaz de fazer juízos reflexivos e estéticos que, na realidade, dependem não apenas de gostos e de preferências, mas de leitura acumulada, comparada, discriminada, ou seja, da intervenção de leitores e de críticos especializados.

Entendo a mineração de dados tão-somente como uma ferramenta surda e muda, que sem a condução da inteligência humana nenhum milagre opera. Os corretores ortográficos são sempre bem-vindos, desde que atualizados. No entanto sempre nos cercearão a liberdade de um uso mais plástico ou neológico da língua. Aqueles que proclamam correções sintáticas são engessados, pois não entendem nossos usos criativos da língua, não entendem nossas inversões, nossas elipses, a performatividade que podemos imputar ao sistema linguístico e que, sem sombra de dúvidas, é o elemento, aliado ao contexto que a enuncia, caracterizador da linguagem literária.

Identificar repetições como critério para ausência de qualidade literária é um assassinato conceitual. A repetição de palavras ou padrões semânticos pode ser o nó do texto literário, a cereja do bolo. Já as repetições em textos de natureza não-literária de fato podem revelar um empobrecimento da linguagem, um defeito da argumentação etc.

Já leram André Sant’Anna? Acho que, se avaliado previamente por tal artifício tecnológico, ficaria nos porões digitais das editoras. E Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Luiz Ruffato? Seriam recusados de saída. Graciliano Ramos e seu estilo econômico e cortante talvez fosse barrado no quesito adjetivação. Mas Paulo Coelho certamente sobreviveria com seu estilo amorfo, insípido e insosso.

(Analice Martins)

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