De nossa perspectiva ainda periférica e terceiro-mundista, tentamos, embora inconsoláveis, explicar crimes bárbaros e hediondos pela chave da miséria e dos processos de exclusão social. Assim, afastamos a banalização do mal e sua gratuidade com a procura de razões de natureza socioeconômica.
Quando uma criança negra, pobre, sem escolaridade e sem identidade civil rouba e mata, pensamos ser, ou queremos pensar ser, uma reação ao sistema que a marginaliza. Quando uma jovem de classe média alta, como Suzane Von Richthofen, planeja o assassinato cruel dos pais para tornar-se, apressadamente, herdeira de um império, queremos o apoio de justificativas psicológicas que deem conta da barbárie. Se não as encontrarmos, não nos importaremos tanto em ver a pele alva de Suzane castigada pelo sol das obrigações de sua pena e de seu cárcere. No mínimo, acreditamos ser uma paga justa: ter sua beleza destruída.
Mas, na sociedade brasileira, talvez imaginemos, ignorantes ou não, que esses são casos isolados, que não correspondem a uma espécie de sociopatia como em solo americano ou primeiro-mundista. Barbárie é o que escapa a qualquer explicação, infringindo severamente códigos de conduta compartilhados. Barbárie deveria ser um conceito relativizado como o de cultura. Por esse prisma, um índio canibal não é um bárbaro. É bem difícil, no entanto, exercitar nosso intelecto para entender esses fatos da cultura. Para nossos olhos cegos, barbárie é barbárie.
O sociopata é um bárbaro? Ignora códigos e convenções sociais? Ou é alguém adoecido pela sociedade e não propriamente alguém que se volta contra a sociedade? Os recorrentes episódios sanguinários dos EUA nos últimos quinze anos nos deixam, além de perplexos, indignados. Por que inocentes crianças e adolescentes em escolas têm que pagar com a vida a sanha doentia de jovens aparentemente não marginalizados pela miséria, pela família ou pela cultura?
A chacina em Newtown, no estado de Connecticut, foi mais uma da lista trágica da sociedade americana. Um jovem de 20 anos, Adam Lanza, entrou, com armas legalmente compradas por sua mãe, na escola de ensino fundamental Sandy Hook, e matou 6 adultos, 20 crianças com idades entre 5 e 7 anos, além da própria mãe, antes de sair de casa. O massacre reacendeu a memória de outra chacina ocorrida em 1999, na escola de Columbine, no Colorado.
“Tiros em Columbine”, polêmico documentário de Michael Moore, quis expor uma faceta do problema que tem encurralado a sociedade americana: a falta de controle na venda de armas de fogo. Em 2003, assisti ao filme “Elefante”, de Gus Van Sant, título homônimo ao do documentário de 1989, do inglês Alan Clarke, que lhe serviu de inspiração. O filme retrata o cotidiano de adolescentes numa escola de Portland, no estado de Oregon, o convívio entre amigos, casos de bullying disfarçados e uma certa tediosa rotina até que, sem indícios ou avisos, dois adolescentes recebem em casa, pelo correio, uma metralhadora semiautomática comprada, sem entraves, pela internet. A ausência de qualquer razão plausível para aquela compra mais do que um equívoco ou lacuna do roteiro traduz o grande elefante “ignorado” que o diretor do documentário diz estar na sala de estar das casas americanas, inclusive na da Casa Branca, e nos faz pensar: “Como passar indiferente por um elefante em plena sala de estar”? Esse comentário do documentarista é a explicação para escolha do seu título. Já Van Sant disse desconhecer tal explicação e afirmou ter pensando numa parábola budista quando escolheu o mesmo título para seu filme. Na parábola, o elefante ia sendo percebido por cegos a partir do tato e da apalpação de suas partes.
O fato é que as lágrimas de Barack Obama, se, por um lado, mostram que não há indiferença pessoal ao “elefante”, por outro, não conseguem removê-lo de sua sala de estar. As “ações significativas” que ele convocou em pronunciamento urgem há muito. Além de significativas devem ser plurais, pois o elefante deve ser apalpado por muitas partes. Duas delas me parecem estratégicas para sua remoção: rever a venda indiscriminada de armas de fogo, pois uma sociedade que precisa se armar a tal ponto padece de alguma doença grave, e discutir a formação de um imaginário glorioso e bélico porque vingado por heróis. Muitos heróis.
O herói, para épica clássica, era o representante das virtudes de um povo. O protagonismo do herói há muito já foi subvertido em nossas narrativas literárias e audiovisuais, mas parece que, numa cultura aprisionada em sua própria imagem glorificada, essa figura subsiste como “phatós” (doença) no lixo cinematográfico de parte do cinema americano, em séries, games.
Essa sociedade adoecida por sua autoimagem é um irremovível elefante. Como ignorá-lo? Crianças da escola de Newtown pediam à professora que não as deixasse morrerem, porque queriam passar o Natal. Infelizmente, seu Papai Noel não pôde entrar na sala de estar.
(Analice Martins)