Ao gesto reativo do jogador Daniel Alves comendo a banana que lhe foi atirada em frequente atitude racista no futebol europeu, seguiram-se muitas manifestações. Das predominantemente imagéticas, como a de Neymar, no Facebook, com mensagem textual não menos polêmica, a crônicas e artigos em jornais e revistas.
Do que li gostei muito do texto de Adriana Calcanhoto, no domingo passado, no “Segundo Caderno” do jornal “O Globo”, pois se valeu de uma estratégia argumentativa inteligente. Ilustrado pelo desenho de uma banana, feito por ela para a edição especial de aniversário do jornal português “Público”, no dia 5 de março deste ano, dedicada ao Brasil com a manchete “Brasil descoberto”, deixou para uma quase nota de pé de página o desvelamento de suas intenções críticas, brincando com o leitor ingênuo nos irônicos aconselhamentos de bom comportamento que ocuparam seu espaço dominical quase na íntegra. Pego apenas uma carona na discussão proposta por nossa cantora compositora escritora ilustradora e antropófaga Adriana Calcanhoto. Algo como “Vamos comer a banana”, devorá-la, degluti-la, mastigá-la, banquete(e)mo-nos!
Ainda que sem as pretensões que lhe foram louvadas, o gesto do jogador permitiu, na interpretação de Calcanhoto, uma resposta que deveria ser sempre nosso acerto de contas com o passado colonizador, como propôs Oswald de Andrade, em 1928, na inteligente metáfora de que a “alegria é a prova dos nove”. Ou como propôs no manifesto anterior, o da “Poesia Pau-Brasil”, deveríamos acertar os ponteiros do retardo causado por nosso passado colonial por meio de uma postura devoradora do inimigo, esta que Adriana Calcanhoto viu na banana que Daniel comeu, mastigou e deglutiu. Comeu o inimigo e se fortaleceu. Metabolizou sua força impositiva, triturou seu escárnio, deu-lhe uma resposta simbólica à altura da provocação.
Com essas atitudes a Europa só insiste em ignorar sua identidade cultural, seu passado escravagista, o saldo de suas ondas colonizadoras. Enfim, o que chamaram de processo civilizatório. Um passado que parece assombrá-la ainda hoje decorridos mais de 40 anos dos movimentos emancipacionistas de ex-colônias africanas sobretudo. No nosso caso, quase 200 anos. O Império disseminado trouxe, em contrapartida, o negro e o índio para o centro das metrópoles, onde reivindicaram seus direitos cidadãos, tomaram de assalto as casas paternas. E aí, cara pálida?
Somada a essa dinâmica migratória, fruto dos processos de descolonização, há toda uma geração já nascida em solo europeu, filha legítima dos que foram “comer” a Europa e “mulatizá-la”, além dos deslocamentos do “capitalismo do pobre”, de que fala o crítico Silviano Santiago, oriundos da globalização, do capitalismo tardio. A Europa, e não apenas a mediterrânea, é um caldeirão étnico-cultural, que precisa se olhar no espelho com urgência para se redescobrir e se reinventar.
A atitude racista dos torcedores é menos uma acusação de nossa condição miscigenada e equivocadamente associada a alguma espécie de primitivismo e mais o atestado de cegueira etnocêntrica de um continente que insiste em não querer enxergar as novas posições também marginais que pode ocupar e que se sabe destronado no novo cenário de correlação de forças político-econômicas.
Por isso, se a banana atirada quis associar o mulato Daniel Alves a um possível primitivismo da condição étnica de que seria oriundo, o tiro saiu pela culatra e só trouxe à tona a superioridade insustentável de um continente que perdeu a coroa. Por isso, vamos comer a banana, vamos comer o “inimigo” e repetir com Oswald de Andrade, evocado por Calcanhoto: “Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. (…) Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem”. Muito menos seu futebol de excelência.
(Analice Martins)