“Ai, palavras, ai, palavras,/ que estranha potência, a vossa! (Cecília Meireles)
Depois dos intensos dias da 7ª Bienal do Livro em Campos e de sua diversificada programação, muitas inquietações voltaram me perseguir. Para apaziguá-las, transformo-as em questões às quais pretendo responder neste artigo de hoje e no próximo.
Um livro não existe sem a leitura. Quando não lido, é linguagem muda. É experiência física, apenas ocupa espaço, mesmo que nas páginas da internet. Um livro sem leitores só existe para quem o escreveu. Para que ganhe vida, é preciso que encontre quem o abrigue nos sentidos e na cognição. Portanto, uma bienal do livro deveria ser uma bienal da leitura, fomentá-la e consolidá-la. A compra do livro pode ser um de seus resultados, mas não necessariamente o primeiro. A “venda” do desejo de ler e de sua importância para a formação crítica do sujeito deveria ser sua preocupação norteadora.
Entre os diversos tipos de leitura possíveis, existe a literária que, além de ser a “maior diversão”, talvez seja também a que mais intervém na ampliação de horizontes reflexivos e imaginativos do leitor. Por isso, começo respondendo à pergunta que me move os passos diários. Retomo a introdução feita para um artigo que apresentei em um congresso há alguns anos.
“O olho vê, o coração revê, e a literatura transvê”. Assim responde o poeta mato-grossense Manoel de Barros, no documentário “Janela da Alma”, quando interpelado sobre os sentidos da visão.
A literatura, enquanto manifestação artística dos estados anímicos e sócio-políticos do sujeito, fornece um ângulo de visão, uma perspectiva para além, uma luneta ou um “close”, muitas vezes inesperados, sobre a realidade empírica que nos circunda. Definida como uma linguagem opaca, em contraposição à transparência exigida aos discursos jornalísticos, científicos ou historiográficos, a linguagem literária recodifica a realidade subjetiva e coletiva dos indivíduos. Nesse processo de desautomatização e de estranhamento, como asseverou a corrente crítica dos formalistas russos, estaria o deslocamento transgressivo operado por ela, que, muito longe de provocar a alienação e o evasionismo das condições contingenciais da realidade, é capaz de intensificar os seus sentidos, de elucidá-los, de desdobrá-los e de recriá-los.
Por que, então, a literatura é ainda percebida tão-somente como atividade compensadora de frustrações e dores? Por que a literatura ocupa ainda um espaço atribuído à ordem do belo e do sublime, como se imaculada fosse ou como se a ela não estivesse destinada a “marca suja da vida”, como propõe Manuel Bandeira em sua “Nova Poética”? E por que, se tal espaço lhe é ainda conferido, como mecanismo distintivo, ela deixou de ter a primazia da educação sentimental dos sujeitos pensantes para ser a prima pobre das manifestações artísticas da contemporaneidade?
O mesmo mecanismo que sempre conferiu à literatura a prerrogativa da formação dos sujeitos na sociedade parece, nos dias atuais, marginalizá-la com a pecha da falta de pragmatismo, de utilidade. Pois é justamente nesse entroncamento que reside a sua pujança. Ao recriar as experiências subjetivas ou coletivas, a literatura fissura o sentido único com o qual se fundam determinadas verdades históricas. Ao apresentar uma “visão míope, distorcida, esgarçada e opaca”, a linguagem literária, em vez de subtrair significados, acrescenta realidades suplementares com as quais a decodificação do mundo e das vivências históricas fica mais segura e compreensível.
Sem ter que ser apenas da ordem do belo e sem ter que responder aos apelos pragmáticos de uma sociedade que se autodevora na instantaneidade do presente, a literatura retarda, obriga o leitor a se deslocar do comodismo de suas verdades, cospe-lhe na cara (ou talvez, de forma mais nobre, como queria Bandeira, “faz o leitor satisfeito de si dar o desespero”).
Como propôs o poeta Eucanaã Ferraz, no prefácio-manifesto da sua antologia de poesia, intitulada “Veneno Antimonotonia”, a literatura deve funcionar para desestabilizar sentidos e não para reconduzir ao equilíbrio e à normalidade, porque, para isso, existem os mecanismos de autoajuda. Literatura é para desvelar, para revelar, para estranhar, para desentender. Nesse confronto que nos rouba do tédio das palavras ordenadas e dos sentidos únicos, está a sua urgência e a sua grandeza como forma sensória e cognitiva.
Ainda recorrendo à outra metáfora, é possível pensar a função da literatura como o nocaute que leva ao chão, com um só golpe, o leitor, como bem definiu Julio Cortázar na sua célebre distinção entre o conto e o romance. Sim, porque, em algum momento, a literatura deve nos nocautear para que recobremos os sentidos sobre o mundo. Resta saber se a sociedade contemporânea ainda se predispõe a esse desassossego.
(Analice Martins)